O assédio, oriundo da misoginia, é um tema que algumas pessoas dizem não aguentar mais. Quando acompanho debates na ficção, na mídia e nos espaços por onde circulo, os posicionamentos são variados, mas existe um grupo que delineia a sua insatisfação. “Ah, coitado dos homens, agora não podem nem brincar mais”, esbravejam de um lado. Do outro, alguém delineia que “está cansado deste MI MI MI feminista desnecessário, coisa de comunista”. A ignorância é tanta que, ainda em 2023, temos que discutir um assunto que já deveria estar devidamente resolvido. E, se tratando de ambientes corporativos, ou organizacionais, a depender da forma como queiramos nos referir ao espaço de trabalho, institucionalizado, estas questões ainda são gritantes, mesmo com campanhas, debates e leis de proteção ao assédio, uma realidade incomoda para muitas profissionais que precisam driblar uma série de obstáculos ao longo de suas carreiras, tendo este embate como algo constante.
Esse é um tópico temático presente na polêmica crônica A Estagiária, do jornalista João Goulart, publicada em 2017 no Correio Braziliense, um respeitado veículo de comunicação em nosso território, mas que demonstrou sua fragilidade institucional em diversos aspectos ao trazer para as páginas de sua versão impressa, bem como para a sua edição online, um texto que passou pelo crivo editorial sem qualquer cuidado, sendo alvo de cancelamento assim que publicado, resultando em denúncias, notas de repúdio, dentre outras manifestações de descontentamento não apenas da comunidade jornalística mais militante e respeitosa, mas também da sociedade civil de maneira geral. O texto é fraco, sem qualquer elemento especial em sua composição desprovida de boas figuras de linguagem ou encadeamento literário.
Plano, parece uma cópia mal feita de qualquer coisa mediana que o grande Nelson Rodrigues teria publicado em meados do século XX. O problema é que A Estagiária, algo “bem a cara” do estilo rodrigueano, mas completamente fora de contexto. O mundo mudou e, precisamos, certamente, mudar também. Mas não é o caso de João Goulart em sua publicação. Na crônica, ele retrata a chegada da estagiária de Comunicação Social, oriunda de uma faculdade privada, na redação onde o narrador atua. Ao se tornar o mais novo membro do ambiente de trabalho, a moça é radiografada por uma série de palavras extraídas de um vocabulário chulo. Só faltou chamar a personagem de “vadia”. Por pouco o autor não fez isso, mas em seu desenvolvimento, consegue construir uma história com coisas ainda mais abjetas.
Não sejamos hipócritas em relação aos desejos. Não é esse o caso. Olhar com admiração o corpo de alguém, seja um homem ou uma mulher, até fantasiar as coisas mais profundas não faz mal a ninguém, sendo algo parte da natureza humana. A carne é fraca, como se diz por ai. O problema é que João Goulart precisava ter compreendido algo basilar na tessitura de uma crônica lida por um público tão vasto: o seu contexto. Num país onde as altas taxas de feminicídio são noticiadas diariamente, onde as lutas por direitos dos mais diversos são travadas em prol da igualdade, escrever algo ofensivo que torne a mulher uma personagem objeto é um perigo. E, neste território inflamável, o autor se arriscou e pagou um preço alto no que diz respeito ao processo de exposição. Teve de publicar uma retratação, apesar do texto não ser convincente.
Ademais, não concordo com o cancelamento em sua totalidade. Se ele se expressou mal e pediu desculpas? Não está tudo bem, mas que sirva de lição. Agora, afundar o outro na lama dos cancelados e impedir que a pessoa possa se retratar e até melhorar é entrar na contradição da cultura do ódio e anular processos educativos. Isso tudo pode ser utópico, mas é uma realidade. Precisamos estabelecer uma comunicação de aprendizagem, onde a violência seja combatida com o debate. Sem debate, não há democracia que se estruture. Na publicação de pedido de desculpas, por sua vez, Joao Goulart disse que pensou no texto como uma maneira de abordar a questão do assédio por meio do desenvolvimento da história da crônica, mas não é isso que podemos ver nas descrições da personagem, tampouco dos homens que a contemplam como comida. Há um deboche, muito cinismo no texto, não sendo possível acreditar em suas desculpas com completude. Mas sigamos. Que outros editoriais sejam mais cuidadosos na seleção do que pretendem publicar em suas páginas, evitando vexames e contradições.
A Estagiária (Brasil, 2017)
Autor: Ana Miranda
Editora: Jornal Correio Braziliense
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