A Espiã da Realeza é o primeiro volume de uma homônima série literária escrita por Rhys Bowen (pseudônimo de Janet Quin-Harkin), e se baseia no cotidiano de Lady Victoria Georgiana Charlotte Eugenie de Glen Garry e Rannoch (para os amigos, apenas Georgie) a falida 34ª pessoa na linha de sucessão ao trono inglês. A aventura inteira se passa na segunda quinzena de abril de 1932, e o leitor, ao entrar nesse universo, percebe imediatamente que tudo se desenrola num ambiente onde uma falsa leveza convive com tensões históricas e sociais e revelam, em cada detalhe, a irreverência juvenil batendo de frente com os resquícios de um sistema aristocrático em lenta decadência. É o que chamo de “romance de dondoca”, embora não chegue ao nível de alta dondoquice visto em Assassinato no Mena House, de Erica Ruth Neubauer (2020). Aqui, pelo menos, a autora estabelece um contraponto entre o humor e a crítica leve a um ambiente cheio de pessoas com hábitos datados, mesquinhos, preguiçosos, parasitários, exploratórios e, em muitos casos, criminosos.
É um cozy mystery que explora um universo real, cheio de etiquetas e cuidados exagerados e absurdos, onde a aparência e o “parecer ser” valem mais do que tudo. Georgie é uma personagem interessante, cheia de vigor e com vontade de aprender coisas novas, indo para Londres após perceber que seria emboscada em uma festa, a fim de encontrar-se com um príncipe romeno com quem, aparentemente, ela deveria se casar. O texto de Rhys Bowen mantém aquela elegância afetada da realeza, o que é absolutamente insuportável; mas tempera essas regras com personagens jovens que falam abertamente sobre sexo e foca na vida de indivíduos que, apesar de terem títulos e certa posição social, precisam de dinheiro e fazem de tudo (como comprovarmos, no decorrer da trama) para conseguir colocar suas mãos em uma boa herança, terra, casa e outros bens.
O leitor não consegue ignorar que esses indivíduos, ao menos nesse recorte dos anos 1930, são criados de forma tão afastada da realidade, que não sabem sequer acender uma lareira. Impossível não se irritar com esse tipo de exposição. Aos poucos, porém, essa desconexão com o mundo real é integrada a uma trama que basicamente se iguala a tantas outras, de jovens garotas que querem tentar a vida em outra cidade, juntam-se a alguns amigos, vão a algumas festas, encontram-se com pessoas importantes (nesse caso, a rainha consorte, Maria de Teck), firmam alguns compromissos e se metem em uma série de problemas. Tal reunião de clichês é bem administrada pela autora, que, apesar das críticas ao sistema e aos comportamentos condescendentes, paternalistas ou preconceituosos da realeza, trata a monarquia e seus ícones com muito respeito, até porque ela teve contato com muitas dessas pessoas ao longo da vida.
O livro não tem nada muito rigoroso em termos de mistério ou grandeza literária. A melhor parte do texto está na apresentação das ameaças a Georgie, após ela encontrar um homem morto na banheira de sua casa londrina. A investigação é feita aos borbotões, e não vejo a autora empenhada em criar um contexto que desse mais atenção à investigação em si, que parece apenas cercar à distância as intrigas do palácio. As tentativas de assassinato de Georgie acabam tendo uma apresentação melhor, sendo muito bem estruturadas e alinhadas à narrativa principal, direcionando a trama para sequências que apresentam novos personagens ou expandem a relação de Georgie com eles. Bowen traz uma boa medida de detalhes sobre os protagonistas, trabalhado algum mistério em torno deles (à guisa de suspeitas), umas poucas cenas fortes de suspense e a exposição de quem tem muito para performar socialmente, muito para esconder e muito para provar aos outros.
Todos os jovens de A Espiã da Realeza são atormentados por um senso opressivo de responsabilidade, mas não parecem querer assumi-las — pelo menos não da maneira clássica. Essa ambivalência, que oscila entre a fuga dos compromissos impostos e a necessidade de se afirmar num mundo em transformação (até Hitler é citado, em algum momento), revela uma juventude que se recusa a ser moldada por tradições ultrapassadas, preferindo reinventar seus próprios códigos mesmo que, por vezes, se perca em seus excessos, ações imaturas, escândalos evitáveis e dilemas internos dos mais variados. Embora possamos fazer reflexões sobre esses aspectos sociológicos, entendemos que o verdadeiro foco do livro é apenas a jornada um pouco incomum de uma jovem da “periferia da realeza” que, por acaso, está envolvida em alguns mistérios. O título da série, “espiã da realeza” acaba sendo um chamariz forçado, porque as ações de Georgie não atingem de forma sólida a esfera da espionagem, e a faz de maneira bem leve na esfera da investigação. Para quem busca um mistério aconchegante mais , não é aqui que encontrará um dos melhores exemplos. Mas, ao menos num nível simples, há espaço para entretenimento, numa leitura que vale a pena.
A Espiã da Realeza (Her Royal Spyness) — Reino Unido, 2007
Autora: Rhys Bowen (pseudônimo de Janet Quin-Harkin)
Tradução: Livia Marina Koeppl
No Brasil: Editora Arqueiro (24 de fevereiro de 2022)
349 páginas