“O passado nunca está morto. E nem é passado.” Antebellum
- IMPORTANTE: Aconselho assistir primeiro ao filme antes de ler o texto!
Reflexo da escola de Jordan Peele, Antebellum leva o terror social ao pé da letra, articulando o horror na emulação direta do desconforto de estar na pele de um negro em um ambiente de hostilidade. Nesse caso, são dois, duas linhas temporais distintas guiadas pela mesma atriz, Janelle Monáe, uma na época da escravatura e a outra na contemporaneidade. Dado a premissa e o fato de ser a mesma atriz para ambas as personagens do presente e o futuro, a dupla estreante Gerard Bush & Christopher Renz começaram a brincar com o senso de percepção temporal do espectador em sua atmosfera de tensão, maturando cuidadosamente diferentes espelhamentos visuais entre os tempos que não só fornecem o material temático discursivo, como encaminham as conexões que levaram a eles, enfim, colidirem em uma interseção.
O grande X do filme está na pluralidade dos implantes que levarão até ela. A começar pelo misto da decupagem minimalista com a frontalidade das ações. Como cada tempo vai ser retratado em bloco único, ou seja, sem entrecortes e transições entre eles, soa estranho o filme adota uma dialética tão direta e ao mesmo tempo criar tensão e desconforto a todo momento com qualquer elemento estranho. Isso de fato, seria um problema, se os diretores não se garantissem tanto no propósito desses desvios para manipular a temporalidade dos espaços cênicos. Percebam como esses movimentos aparentemente involuntários vão nos dando pistas de uma localização espacial dos acontecimentos. É feito de um modo tão escancarado que fica imperceptível, já que simultaneamente o filme vai trabalhando em outros setores um pressagio de algo, essencialmente já estabelecido nas entrelinhas.
Então sempre estamos esperamos por algo que já aconteceu, só não sabemos disso ainda, levando uma estranheza que mesmo antes de saber do que se trata, se mantém num grau de coerência pela abordagem do terror. Como dito, esse está vinculado diretamente ao sofrimento de ser negro, no caso, mais especificamente, no primeiro bloco, o sofrimento de ser aprisionada como escrava. Nisso, aquele contexto de aprisionamento leva qualquer ação (uma fala, um movimento brusco) ser motivo de extrema periculosidade à vida de qualquer personagem. Nos acordes arranhados da trilha, cada uma dessas ações se tornam um prefixo para um verdadeiro horror. Em outras palavras, basicamente o filme teatraliza 12 Anos de Escravidão num clima de terror explícito– ênfase no teatraliza – para reforçar a temática, mas com uma elaboração de desconforto subjetivo também. Algo vindo do desconhecido em embate com a necessidade de fuga, crescendo a estranheza e a curiosidade para o que será o próximo bloco.
É importante frisar a eficácia da trilha, permitindo mesmo no diurno, que a atmosfera nos capture e isso é essencial para o contraponto seguinte. Quando começa o segundo bloco, a expectativa é que tenham espelhamentos maiores para engatilhar as conexões das linhas temporais. O filme já estava naquele momento chegando na metade e conceitualmente não havia induzido nenhum caminho e continuou sem fazer isso. Ele concentra sua atenção no desenvolvimento de personagem, maturando o entorno novamente no mesmo tipo atmosférico, meio vago, só que sem ter explicitamente para onde direcionar o terror. Um novo filme precisa surgir a partir disso, e não parece jogado, por contar com o auxílio do acúmulo paranoico que a decupagem instaurou na outra metade. Enquanto o tom permanece equilibrado, a falsa tensão para criar a verdadeira tensão, já atingia uma curvatura tão elevada que o nosso próprio desconfiômetro nos engana.
E é essa a ideia, de desconfiança, que faz o terror do negro no contemporâneo não é mesmo? Em Corra! por exemplo, não sabíamos das motivações dos pais da namorada do protagonista, mas sentíamos um estranhamento entre as raízes sociais, pois a forma incitava essa paranoia e o conteúdo implicitamente carregava sua discussão em falas de racismo velado. Antebellum leva esse processo para as duas linhas temporais e bagunça ainda mais a ambiguidade das tensões raciais em seu segundo bloco, contextualizando sua protagonista como uma influencer global e considerando que em seu período as relações inter-raciais conseguem ser mais facilmente transparentes, apesar do que dirá a conexão final. A filha não sofre bullying da coleguinha branca, viram até amigas, por que não? Quem sabe até melhores amigas no futuro, como a protagonista tem, uma melhor amiga branca, que junto a outra melhor amiga negra e gorda, estabelecem tematicamente um certo grau de esperança sobre um futuro que as relações sociais não sejam carregadas de preconceitos estereotipados e diminuidores de raça ou corpo.
Parece utópico pensar que isso um dia ocorra, mas é tão utópico quanto pensar no universo revelado ao final – que pasmem, fazem parte da mesma realidade – sendo tão plausível quanto. Assim, os diretores dão um xeque-mate sobre o corpo da mensagem racial no tempo e são libertos a adentrarem de vez ao terror raiz, um ato final de verdadeiro survival horror, que poderia ter sido menos inerte e tão duradouro quanto os outros blocos, mas que satisfaz por sujar as mãos no sentimento revanchista. Por fim, ainda sobra tempo para conectar na decupagem a teatralidade mencionada, numa desculpa para um show virtuosista de imagens alavancando a apoteose final do revanchismo, mas também, sendo parte integrante do processo de conexões entre as narrativas. Afinal, o que seria o racismo, se não, um grande teatro de raiva alimentada pelo medo?
A Escolhida (Antebellum | EUA, 2020)
Direção: Gerard Bush, Christopher Renz
Roteiro: Gerard Bush, Christopher Renz
Elenco: Arabella Landrum, Jena Malone, Eric Lange, Janelle Monáe, Tongayi Chirisa, Achok Majak, Jack Huston, Kiersey Clemons, T.C. Matherne, Robert Aramayo, Marque Richardson, London Boyce, Bernard Hocke, Dayna Schaaf, Gabourey Sidibe
Duração: 105 min.