A estrutura de tie-ins de Guerras Secretas é uma das mais interessantes já usadas em mega-sagas. No lugar de ligar séries em andamento ao evento principal, a Marvel optou por cancelar todas as suas publicações e, em seu lugar, recriar, em versão “de bolso”, quase todos os momentos significativos de sua história editorial. Essa oportunidade é perfeitamente possível e lógica, pois Guerras Secretas parte da premissa que o Doutor Destino, agora, tornou-se um deus e recriou o Universo Marvel do seu jeito. Ele governa centralmente e todo o resto do mundo é dividido em baronatos temáticos, um para cada saga ou crossover da editora em versões peculiares. Com isso, os tie-ins conseguem, em grande parte e de forma inédita, serem até mais interessantes do que a saga em si.
A Era do Apocalipse é a releitura da saga homônima noventista que colocou os mutantes mais queridos da editora em um futuro distópico comandado opressivamente por Apocalipse ou, para os íntimos, En Sabah Nur, o mais antigo mutante que existe. E o que chama a atenção no texto de Fabian Nicieza, roteirista argentino e um dos responsáveis pela saga original, é como ele escolheu narrar sua história: pelo olhos de um dos mutantes com os poderes mais “inúteis”, Cifra, capaz de entender todas as línguas e linguagens existentes no universo. Ele é ao mesmo tempo o narrador e o MacGuffin da história, que já começa com Holocausto, filho de Apocalipse e um dos Quatro Cavaleiros, localizando-o na Terra Selvagem e enfrentando os X-Men (Tempestade, Colossus, Homem de Gelo, Cristal, Noturno e Êxodus) que defendem ferrenhamente o jovem, apesar de nem ele entender exatamente o porquê.
Não demora e a ação volta para Novo Cairo e o gueto humano, onde vivem os últimos sobreviventes do homo sapiens. Lá, uma Carol Danvers sem poderes comanda a insurreição humana e Magneto comanda o que resta de seus X-Men: Emma Frost, Vampira, Wolverine, Blink e Incinerador. Do outro lado, os irmãos Summers comandam uma tropa de elite de mutantes para reprimir qualquer tentativa de insurreição contra o Barão Apocalipse. Mas tanto Magneto quanto Apocalipse têm um plano maior, mais sinistro e os mutantes acabam sendo apenas peões em uma pancadaria cheia de traições e reviravoltas.
O espírito que Nicieza tentou imprimir a seu trabalho é claro: ele manteve ao máximo a atmosfera da saga original ao ponto de essa minissérie quase poder ser considerada parte da série dos anos 90, considerando que seu sucesso fez com que a Marvel lançasse, ao longo dos anos, vários “remendos” que a transformou em um “frankenstein”. Essa mini é, diria, um trabalho até superior ao que veio depois da saga principal em 1995.
E essa atmosfera do original é amplificada pela arte de Gerardo Sandoval e seu estilo exagerado, mas belíssimo. Sim, belíssimo. Tenho plena consciência que muita gente não gosta dos personagens “ultra-deformados” de Sandoval, mas, particularmente, acho o trabalho dele excepcional justamente por ele não ter medo de pegar personagens clássicos e dar sua própria e característica aparência “monstruosa”, mas em um conjunto harmônico de se tirar o chapéu. Além disso, ele sabe, como poucos, preencher suas páginas e suas splash pages duplas com uma distribuição de personagens e detalhes de fundo que ao mesmo tempo nos dá um panorama geral e confinado da ação. Aliás, a ação é outro ponto forte seu, com uma movimentação dinâmica e potente. É uma pena, porém, que ele só tenha desenhado os três primeiros números da minissérie. Os dois restantes ficaram ao encargo de Iba Coello que não tem a mesma energia e cinética, apesar de ser claro seu esforço para, mantendo seu estilo, emular o de Sandoval de maneira que não haja uma quebra muito grande na fluidez narrativa.
O maior problema desse A Era do Apocalipse, porém, está mesmo na evolução (ou, talvez, involução) do roteiro de Nicieza. O autor, não demora, começa a dar sinais de que não sabe muito bem o que fazer com Cifra. A disputa dos dois lados pelo rapaz começa a não fazer muito sentido e todo o ar profético que existe no começo começa a se perder. Assim, não resta muita função a ele que não ser a de narrador do conflito. Mas sua narração é particularmente brilhante, pois ele vai além de narrar e se tornar, digamos, um comentarista das intenções por trás das palavras. Afinal, seu poder de entende línguas e linguagens inclui também o poder de “sentir as palavras”, ou seja, ele é capaz de perceber as intenções e as verdades – e mentiras – por trás das frase. Ele lê as entrelinhas, para resumir. Com isso, o trabalho do letrista Clayton Cowles torna-se essencial e merece especiais aplausos aqui, já que ele substitui os balões narrativos por uma construção de pensamentos de Cifra que estão sempre em “conflito” com o que está acontecendo nos balões de fala propriamente ditos. É realmente como se assistíssemos a pancadaria no conforto de nosso lar e com a ajuda de um bom comentarista que entenda bem do que estamos vendo, quase como uma meta-história. Isso acaba de certa forma compensando a inabilidade de Nicieza em cumprir a promessa estabelecida no início sobre a grande importância de Cifra.
Há outras questões também, que detraem do todo do roteiro de Nicieza. As traições internas no grupo de Apocalipse não ganham desenvolvimento no espaço de apenas cinco edições e o próprio Apocalipse, quando se digna a se levantar de seu trono, pouco faz além de soltar frases de efeito aqui e ali. E o final, bem, digamos apenas que ele é conveniente demais, com um deus ex machina que soluciona tudo muito facilmente.
Mesmo com seus problemas, a minissérie A Era do Apocalipse é um ótimo tie-in de Guerras Secretas. A dupla Nicieza-Sandoval consegue muito eficientemente emular o look and feel da saga original trazendo bons elementos novos e uma narrativa diferenciada e inteligente que torna a leitura fácil e agradável ao longo das pouco mais de 100 páginas da edição.
A Era do Apocalipse (Age of Apocalypse, EUA – 2015)
Contendo: A Era do Apocalipse (2015) #1 a #5
Roteiro: Fabian Nicieza
Arte: Gerardo Sandoval (#1 a #3), Iban Coello (#4 e #5)
Cores: David Curiel
Letras: Clayton Cowles
Editora original: Marvel Comics
Datas originais de publicação: setembro a dezembro de 2015
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação no Brasil: julho de 2016 (encadernado)
Páginas: 116