Talvez eu empregue mais palavras, na presente crítica, para contextualizar e explicar o que é a Edda Poética do que com comentários literários propriamente ditos, pois não só é complicado escrever sobre poesia, como a dificuldade é exponencialmente multiplicada pelo fato de ser uma tradução cujo original muito poucos têm capacidade de ler e de ser uma série de poemas quase fragmentários reunidos em uma importante compilação do século XIII. Mas vamos lá, com calma e tranquilidade, pois não só os poemas merecem, como o trabalho de Jackson Crawford, vertendo os textos originais para o inglês, deveria ser mais conhecido por aí.
A Edda Poética, também conhecida como Edda em Verso ou até mesmo Edda Antiga é o nome moderno para uma compilação de 30 poemas em nórdico antigo – 11 sobre deuses e 19 sobre heróis nórdicos e germânicos – de autores desconhecidos, transmitidos oralmente por menestréis de geração em geração e reduzidos a termo, por assim dizer, no Codex Regius – ou, simplesmente, Livro Real – obra literária escrita na segunda metade do século XIII (alguns especialistas costumam indicar os anos 1270 como gênese, ainda que isso varie tremendamente) e mantida em completo desconhecimento até 1662, quando Brynjólfur Sveinsson, então Bispo de Skálholt, na Islândia, presenteou-o ao Rei Frederico III da Dinamarca (daí o nome Codex Regius), afirmando que havia tomado posse da obra quase 20 anos antes, em 1643. Em poucas palavras, a Edda Poética é, juntamente com a Edda em Prosa, de Snorri Sturluson, uma das mais importantes fontes de toda a Mitologia Nórdica e dos grandes Mitos Germânicos.
Apesar de o Codex Regius ser tecnicamente posterior à Edda em Prosa, seu conteúdo é baseado em criações culturais anteriores, com historiadores oscilando entre daí seu outro nome Edda Antiga, sendo efetivamente a grande base para a organização da vasta Mitologia Nórdica, composta por um panteão de deuses normalmente liderado por Odin que, como muitos sabem, tem um enorme variedade de nomes, dentre eles Grímnir. Da mesma maneira, o mito dos Nibelungos (Niflungs, nos poemas) de Siegfried (Sigurd) e de sua esposa Kriemhild (Gudrún), um dos alicerces da cultura germânica transformado em ópera por Richard Wagner e filme por Fritz Lang, tem sua “origem firme e definitiva” nesta Edda.
No entanto, cada “versão” moderna da Edda Poética é diferente da outra, com a exclusão de alguns poemas repetitivos e a inclusão de outros que não estavam original no Codex Regius, mas que são considerados da mesma época e com elementos narrativos muito próximos. Escolhi a versão de Jackson Crawford, na língua inglesa, por diversas razões. A primeira e mais evidente delas é a dificuldade de se encontrar versões dos poemas da Edda Poética em português pelo mesmo autor. Segundo, a língua inglesa é gramática e sonoramente mais próxima próxima do nórdico antigo, já que é dele que vem sua estrutura básica, pelo que a leitura em língua latina seria ainda mais distante e, portanto, potencialmente carregando ainda mais intepretações e liberdades por parte do tradutor. Em terceiro, o texano Crawford, linguista especializado em línguas indo-europeias e Ph.D em Estudos Escandinavos e professor da Universidade do Colorado, oferece não só uma tradução acessível, usando inglês razoavelmente coloquial, sem procurar rebuscar o vocabulário quando ele consegue evitar, como também escreveu uma longa introdução que permite uma boa contextualização da obra em geral e de sua tradução em especial, além de inserir introduções curtas antes de cada poema traduzido para informar sobre o que se trata, sua importância e outras informações importantes, como a ordem de leitura – que ele às vezes altera em relação ao Codex Regius para melhorar a compreensão e se o poema está ou não completo – gerando, no final das contas, um livro sólido que realmente deixa evidente a importância dos poemas para a História do Ocidente, mais especificamente para os países escandinavos e germânicos.
Falando agora um pouco dos poemas em si, é interessante notar o quanto eles são estruturados ao redor de aliterações e de repetições, algo que Crawford faz de tudo para manter intacto. Ao mesmo tempo, especialmente nos poemas sobre os deuses, há por diversas vezes jogos de perguntas e respostas, normalmente com Odin em uma das pontas, que não só criam o arcabouço das lendas sobre Loki, Fenrir, Balder, Thor e todos os demais personagens que, de uma forma ou de outra, acabamos conhecendo (nem que seja pelas HQs e filmes da Marvel…), como também iluminam os hábitos e a cultura da época em que os poemas surgiram, lá pelos séculos IX ou X, ainda que as datas sejam sujeitas a debates, claro, mas a menção à Átila, o Huno e seu uso como personagem essencial da saga dos Nibelungos, estabelece um marco confiável que determina que pelos menos alguns dos textos (ou, melhor dizendo, poemas orais) não poderiam ter sido compostos antes do século VI. A visão dos povos escandinavos sobre a importância das ferramentas, das armas, das amizades é uma constante nos poemas, assim como é a importância da mulher que, ainda que muitas vezes seja tida como alguém em que não se pode confiar, ganha relevo pelo respeito demonstrado, especialmente as diversas passagens em que o adultério pelo homem (não pela mulher!) é condenado.
Nos poemas dos heróis, há uma repetição temática bem maior. Ainda que os primeiros sejam dedicados ao mito de Helgi Hundingsbani, da Saga dos Volsungos que, em geral, abarca a dos Nibelungos, mas que pode ser visto separadamente, os restantes giram ao redor dos Nibelungos, Sigurd e demais personagens clássicos, inclusive o mítico dragão que o herói mata. Há poemas que contam a saga toda, outros que fazem recortes de situações, expandindo-as, o que por vezes pode confundir o leitor, algo natural considerando a natureza da compilação original.
É também perfeitamente visível a influência da Edda Poética na literatura fantástica ocidental moderna com J.R.R. Tolkien, claro, sendo o autor que provavelmente mais diretamente bebeu do texto original, usando os nomes dos anões conforme listados em um dos primeiros poemas e fazendo sua própria versão do assassinato do dragão por Sigurd e a conversa que se segue entre os dois, em O Hobbit. Mas é igualmente possível notar influências da Edda Poética em autores como August Strindberg e até mesmo Jorge Luis Borges, o que coloca o compilado como um dos alicerces não só das Mitologias Nórdicas e Germânicas, como também da Literatura Ocidental, ali em prateleira próxima da Odisseia, das tragédias gregas, das obras de Plutarco, Santo Agostinho, Dante e tantos outros nomes.
Como não me atrevo a “dar nota” para textos dessa magnitude, a avaliação acima fica limitada ao trabalho de Jackson Crawford que é muito bem-sucedido em deixar o leitor consideravelmente confortável na aventura que é ler poemas tão antigos, por sua vez baseado em tradição oral. Sua introdução geral é muito valiosa, especialmente ao abordar em detalhes suas escolhas gramaticais e ao lidar com o panorama geral da Edda Poética como um todo. Por outro lado, ele é, talvez, um tanto quanto econômico nas introduções específicas dos poemas, por vezes limitando-se a dizer o que ele trata, sem maiores detalhamentos, algo que ele talvez possa desenvolver em futuras edições. Seja como for a Edda Poética é, apesar de difícil, uma leitura gratificante para quem tiver interesse nas Mitologias Nórdica e Germânica e para conhecer uma das mais importantes bases narrativas para a literatura moderna, especialmente a fantástica.
A Edda Poética (The Poetic Edda – Islândia, por volta de 1270)
Autores: desconhecidos
Tradutor da versão lida: Jackson Crawford
Editora (da versão lida): Hackett Publishing Company
Data de publicação (da tradução lida): 05 de março de 2015
Páginas: 392