A experiência de assistir a A Deusa dos Vagalumes acompanha a própria vivência de sua jovem protagonista, assemelhando-se a uma viagem de drogas. Não que seja um filme psicodélico, mas no sentido de que a narrativa claramente se assemelha a fases que um usuário de drogas sente: a euforia, o relaxamento e a bad trip. De certa forma, todas elas marcam um ato do longa canadense.
Em um primeiro momento, a vida da adolescente Catherine é frenética. Do caos no ambiente familiar, provocado pela separação dos pais, aos problemas na escola, envolvendo ser agredida por uma colega, a protagonista passa a usar drogas como um escapismo justificável diante de suas circunstâncias. O primeiro ato segue um ritmo de fluxo com sequências de muita energia e sentimentos acumulados que vão se extravasando, o que fica bastante explícito pela cena de sexo com o primeiro namorado. Basta comparar como a diretora Anäis Barbeau-Lavalette contrasta este primeiro momento de descoberta sexual com o outro ato sexual feito no segundo ato. Enquanto o primeiro é cru, sujo e frenético, movido na base do tesão, o posterior é mais como uma lenta música em sintonia. A inconsequência pelo uso de drogas também marcam esta fase, com a fuga da polícia sendo mais como uma diversão que provoca um pico de adrenalina neles do que de fato um perigo real.
Posteriormente ao fim de relacionamento com o primeiro namorado, que culmina em uma catarse pela dança, um novo amor surge e o ritmo da “onda” muda também. É o período de deslumbramento e alienação da realidade, no qual tudo parece bem. Assim, A Deusa dos Vagalumes sai de um ritmo alucinante e passa a curtir o momento. Mas, diante desta falsa estabilidade, os vícios de Catherine e seu grupo só vão aumentando, camuflados por uma normalização dos seus atos. Já no terceiro ato, consequências para tudo que fizeram começam a surgir, levando as sequências da overdose e do suicídio como ápice deste período de bad trip e “ressaca”. O mais curioso é pensar como o primeiro ato e o terceiro guardam paralelismos, principalmente no que se refere ao ritmo, evidenciando como que, ao usar drogas, os sentimentos estão à flor da pele e podem mudar de uma hora para outra.
Não se trata só de um um longa apenas sobre usar drogas na adolescência, mas sobre diversos outras questões, entre elas a própria falência moral de uma família que é tão cheia de problemas quanto a própria filha. Não deixa de ser irônica a cena em que o pai traz um amigo policial para palestrar à Catherine sobre o uso de drogas e Anäis sutilmente enquadra ele bebendo uma cerveja conforme se discursa sobre vício. Há uma clara proposição de uma ação desencadeada por “causa-consequência” pelo texto que associa o abandono parental com a entrada no mundo das drogas.
Em Deusa dos Vagalumes, Anäis Barbeau-Lavalette consegue se afastar de algumas armadilhas do roteiro de Catherine Léger e Geneviève Pettersen, que poderiam levar o filme para uma linha meio moralista de ser apenas uma obra com a mensagem de “não use drogas” — a cena no qual a menina ganha o livro Christiane F. soa panfletária. Saindo desta simplicidade, a diretora canadense prefere explorar a sensorialidade de toda essa experiência, atuando numa zona cinzenta entre a romantização e a denunciação, sendo de certo que é justamente aí que o filme melhor funciona. Mais do que julgar, sobre sentir todo aquele turbilhão de sentimentos vividos em um curto momento pela adolescente, o que inclui ir da alegria para a tristeza como uma montanha russa.
A Deusa dos Vagalumes (La déesse des mouches à feu) — França, 2020
Direção: Anäis Barbeau-Lavalette
Roteiro: Catherine Léger, Geneviève Pettersen
Elenco: Kelly Dépeault, Éléonore Loiselle, Caroline Néron, Normand D’Amour, Marine Johnson, Antoine Desrochers, Robin L’Houmeau, Noah Parker, Emmanuel Bilodeau
Duração: 105 mins.