O terceiro filme da filmografia do cineasta italiano Michelangelo Antonioni compreende-se como um trabalho menor do mesmo, ainda mais se comparado com grandes sucessos posteriores. Ainda em início de carreira, a qual duraria por muitos e muitos anos, o diretor busca com a obra retratar a figura da mulher no espaço cinematográfico, desenvolvendo seu argumento em cima das oportunidades que a indústria cede a ela. Em um ambiente extremamente sexista, o diretor mostra-se visionário, abordando já nos anos 50 um comentário extremamente atual sobre as mazelas que o capitalismo acaba causando, fruto de uma sociedade tão doente quanto os produtos que consome.
Na premissa, Clara Manni (Lucia Bosé) é uma estrela em ascensão que um dia fora revelada pelo executivo de filmes Gianni (Andrea Checchi). Em mais uma empreitada na indústria de filmes italiana, testes revelam um maior interesse do público na figura da atriz do que nas peripécias do roteiro. Com o produtor Ercole (Gino Cervi) ciente de tal preferência, o investimento do estúdio passa a ser explorar, no marketing e no próprio longa-metragem, a imagem da mulher, tornando Clara tão produto quanto o próprio filme. A virada de tudo está no pedido de casamento de Gianni, e consequente – consideravelmente manipulada – aceitação por Clara.
Em mais uma parceria com Antonioni, Lucia Bosé consegue transmitir as características de sua personagem muito bem, mostrando sua evolução como atriz. Logo no início do filme, o encontro de Clara com seus pais, que foram informados antecipadamente que a filha deles iria se casar, expõe a boa performance de Bosé, perdida em meio a um futuro casamento não tão desejado quanto aparente. A realidade é que Gianni utiliza dos pais de Clara para força a aceitação da mulher, visto que os mesmos mostram-se extremamente contentes com o status social e econômico que será provido pelo matrimônio. A mulher, extremamente impotente diante de tais comentários. Uma atitude ardilosa de um homem que usa os meios para se favorecer da garota, assim como a própria indústria cinematográfica faz.
O que acontece a seguir é a retirada de Clara do filme “La donna senza destino”, uma imposição articulada por Gianni, tão – senão ainda mais – machista quanto a própria publicidade do filme. Gianni não quer expor a sua mulher, a sua sensualidade e beleza, o que reflete no manejo do mesmo para deixar Clara cada vez mais dentro de casa, cuidando dos afazeres domésticos. O roteiro vai fluindo episodicamente, e em alguns segmentos percebe-se a exposição preencher lacunas no tempo. Pela metade do filme, a introdução do personagem Nardo (Ivan Desny), casa-se com a tentativa de Gianni em colocar Clara para bilhar em um papel “sério”. Com a recepção nada amigável dos críticos envolta do filme sobre Joana D’Arc, Clara vê-se cada vez mais tentada em se rebelar, assumindo uma postura de protagonista de sua própria vida.
Antonioni tem um domínio espetacular sobre a câmera. Na sequência inicial, é descompromissado ao flagrar uma mulher inquieta perambulando pela noite. No mais breve tardar, revela-se esta como Clara, que anteriormente encontrava-se em um estado de ansiedade pelas reviews do público que está vendo seu filme. O diretor faz um bom uso de seus planos, fluidos e longos, com cortes bastante comedidos. Há de se observar as cenas dentro do estúdio de filmagem, visto que tais possuem uma mise-en-scéne extremamente rica a ser apreciada.
A Dama Sem Camélias, um jogo de palavras com o romance do escritor francês Alexandre Dumas, exprime críticas à indústria cinematográfica e à exposição da mulher como produto a ser consumido nas telas. Ao final do longa, um diretor apresenta uma proposta por ele considerada “séria” à Clara. Ela recusa-a por conter inúmeras cenas de sexo. Para ela o roteiro é apenas um pretexto para que ocorra esses segmentos. Considerada uma atriz lindíssima, se despir ou colocar-se em situações eróticas não seria uma parte fundamental do filme, na redefinição do corpo como arte, mas sim uma tática de mercado para atrair o público masculino. Se não consegue enfrentar essa corrente, infelizmente acaba por se unir, na esperança de um dia poder sair dela.
A Dama Sem Camélias (La signora senza camelie) — Itália, 1953
Direção: Michelangelo Antonioni
Roteiro: Michelangelo Antonioni, P.M. Pasinetti, Suso Cecchi D’Amico, Francesco Maselli
Elenco: Lucia Bosé, Andrea Chenni, Gino Cervi, Ivan Desny, Monica Clay, Alain Cuny, Anna Carena, Enrico Glory
Duração: 101 min.