Em sua trajetória de escrita, Nelson Rodrigues, tal como os seus personagens, demonstrou obsessão por determinados temas, quase sempre trabalhados além da trivialidade. A traição, constantemente trabalhada na ficção e integrante dos eixos de suas produções mais polêmicas, foi um deles, mas delineada de maneira a sair do choque e tecer críticas contundentes ao tecido social carioca de onde o escritor observava comportamentos e desenvolvia as suas análises das relações humanas. Em A Dama do Lotação, temos um relato bastante trágico sobre o casamento, mas retratado com camadas generosas de humor, em doses ácidas, numa mescla de drama e comédia que poucos autores conseguiram a proeza de estabelecer com eficiência. Com sua protagonista, ele apresenta mais uma de suas “mulheres fatais”, figuras ficcionais que rasuram a ordem vigente e deixam os homens arruinados.
No conto, somos apresentados ao núcleo familiar de Solange e Carlinhos, ambos de origens importantes do Rio de Janeiro, imersos numa existência que preconiza, como manual de comportamento, os bons costumes, a moral social e o apego ao que é tradicional. Os amigos e contatos destas pessoas jamais podiam imaginar que, no suposto casamento repleto de felicidade, a traição era uma dominante, em especial, vinda da esposa, uma mulher recatada e do lar. Assim, por meio de digressões e detalhes enriquecidos pela escrita excepcional de Nelson Rodrigues, vamos conhecendo aos poucos os hábitos logo depois do estabelecimento do principal conflito da narrativa: os desejos de Solange face ao casamento.
Percebemos, ao passo que a história avança, o embate entre aquilo que precisa ser feito e aquilo que a personagem deseja. Solange é uma mulher bela, interessada no marido, mas também sente atração por situações sexuais inusitadas. Todos os dias, no período vespertino, com o marido fora de casa, ela pega o lotação e sai em aventuras com estranhos. Chega em casa, se arruma, espera o marido chegar e põe o jantar. Para a sociedade focada no patriarcal, esta é uma postura esperada dos homens, mas das mulheres? Não. Solange, então, se torna uma transgressora da moral, sem culpa alguma de suas ações, o que culmina na morte do marido para o mundo. Agredido pela falta de moralidade da esposa, Carlinhos entra em crise profunda. Sem desfecho trágico, Nelson Rodrigues nos apresenta uma personagem que não aceita o destino demarcado para as mulheres, mesmo que isso representasse a “morte” do marido.
Como ela diz, é “mais forte do que”. Puro estudo para psicanálise. Sensual e voluptuosa, Solange causa o desconforto do marido que pede ajuda ao pai, mas é aconselhado a seguir para casa e resolver o seu casamento. É assombroso, mas também muito humorado, o jeito que o conto nos mostra a naturalidade do comportamento de Solange. Isso, reforçado pela escrita cuidadosa em suas adjetivações, com passagem que nos lembram as descrições das rubricas dos textos teatrais do contista, também dramaturgo, incisivo em suas abordagens, sem muitas firulas. Após a visita de Assunção, um amigo do trabalho, temos o despertar da desconfiança, investigada e declaradamente certeira. Publicado na coluna A Vida Como Ela É, do jornal A Última Hora, depois republicado e transformado em filme com Sônia Braga, em 1978, A Dama do Lotação traz Nelson Rodrigues cutucando e causando seu habitual desconforto na tradição, numa de suas melhores produções para este gênero literário: cru, sarcástico e muito objetivo.
A Dama do Lotação — Brasil, 1958
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Nova Fronteira
5 páginas