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Crítica | A Crônica Francesa

Carta de amor a um tipo extinto de jornalismo.

por Luiz Santiago
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A descrição promocional de A Crônica Francesa acerta em dar o tom daquilo que o filme verdadeiramente é: “uma carta de amor a jornalistas, ambientada em um posto avançado de um jornal americano numa cidade francesa fictícia do século 20“. A cidade citada é Ennui-sur-Blasé (“tédio-sobre-apatia“) e nela funciona o peculiar jornal The French Dispatch, que já no início da película nos é apresentado sob o máximo cuidado estético que se espera de um filme de Wes Anderson. Nesta ocasião, o diretor eleva ao máximo o seu estilo de compor imagens, fazendo deste o seu mais explosivo, detalhista e impressionante projeto em termos de desenho de produção. Para os olhos, A Crônica Francesa é uma coletânea de prazer atrás de prazer. Integrado à história, porém, esse aspecto acaba caindo na armadilha de ser muito mais forma sobre substância.

Desde que foi anunciado o nome e a sinopse do filme, sabe-se que o diretor pensou A Crônica Francesa como uma espécie de homenagem à revista The New Yorker, fundada em 1905 por Raoul Fleishmann e Harold Ross, este último, servindo para a criação do personagem Arthur Howitzer Jr. (Bill Murray), editor do French Dispatch. Como o filme é diegeticamente uma homenagem a esse indivíduo, somos convidados a acompanhar uma narrativa em abismo, com uma história caindo dentro de outra história e, juntas, compondo as principais crônicas que marcaram a existência do jornal, de seus principais jornalistas e do estilo diferente e peculiar de cada um. Um estilo de jornalismo que não existe mais em larga escala.

No primeiro bloco, The French Dispatch Office, conhecemos o espaço físico, a fauna de indivíduos ligados ao jornal (e no decorrer do filme me vieram impressões bastante fellinianas na forma como Anderson explora os mais peculiares rostos na tela) e acompanhamos o tour de Herbsaint Sazerac (Owen Wilson), personagem inspirado no jornalista Joseph Mitchell, pela cidade. A premissa desse bloco de abertura é bastante inteligente em termos estruturais, pois faz duas coisas ao mesmo tempo: apresenta toda a equipe criativa e apresenta toda a cidade e suas transformações com o tempo, estabelecendo o tom de mudanças que marcarão as outras aventuras. Aqui, diferente das próximas histórias, não sentimos uma interrupção abrupta e negativa do que é narrado, pois entendemos o seu propósito rápido e vemos cumprir, num curto espaço de tempo, tudo o que havia para ser cumprido em relação à narrativa. A costura metalinguística é bem feita e nos leva imediatamente para The Concrete Masterpiece.

Quem guia essa crônica artística é a jornalista J.K.L. Berensen (Tilda Swinton), e aqui a fotografia explora intensamente a dualidade entre cor e preto e branco, destacando o estilo palestrante da jornalista ao contar a história de Moses Rosenthaler (Benicio del Toro, o único ator que não parece se encaixar bem no gigantesco e estelar elenco do filme, apesar de entregar uma boa performance), um “artista encarcerado” que junto de sua musa Simone (Léa Seydoux) e do negociante de arte Julien Cadazio (Adrien Brody, cujo personagem é baseado no icônico Lord Duveen) flutua entre o gosto da crítica e do público por uma produção plástica, e essa é a desculpa que o diretor usa para explorar, ao longo de todo o bloco, não apenas teorias mas também imagens ricas, engraçadas e muito significativas sobre as particularidades de um estilo na criação artística.

Revisions to a Manifesto é a minha crônica favorita do filme, liderada pela jornalista Lucinda Krementz (Frances McDormand), cuja função é traçar o perfil de estudantes revolucionários. O roteiro, nesse ponto, se torna mais leve, consegue passar o impacto do evento histórico que o inspira (Maio de 1968, na França) e a escola cinematográfica que o guia espiritualmente (a Nouvelle Vague). Destacando o estudante revolucionário Zeffirelli (Timothée Chalamet), o diretor consegue criar uma louvável atmosfera de sonho de mudança política num mundo cheio de necessidades mesquinhas, não abandonando o humor e as particularidades humanas de amigos, inimigos e simpatizantes das mais diversas causas. É um bloco com belíssima saturação fotográfica, um dos que melhor exploram os figurinos dos personagens e o que melhor consegue fazer a inserção da “história dentro da história“, diferente do que encontramos na crônica de encerramento, The Private Dining Room of the Police Commissioner.

Apesar de ter uma excelente sequência de perseguição feita todinha em animação e de trazer uma composição diferente na forma de expor a reportagem do jornalista em questão (Roebuck Wright, interpretado por Jeffrey Wright. Aqui, o personagem é um amálgama de James Baldwin com A. J. Liebling), falando num talk show sobre sua carreira, sobre sua sexualidade, sobre culinária e… sobre um caso de polícia. Embora mantenha a nossa atenção durante todo o tempo, o bloco é o mais burocrático do filme e se revela um tanto confuso em relação ao seu propósito final, pela mistura que o roteiro faz na reportagem, ligando gastronomia com um sequestro.

A forma de A Crônica Francesa é daquelas bastante perigosas porque exige que os dramas internos sejam narrados com começo, meio e fim (posto que não se interligam de maneira a completar-se), fazendo o nosso interesse se despertar pelos personagens e encerrando esse desejo a contento, antes de passar para a próxima aventura. Bem, é justamente isso que Wes Anderson não faz aqui. Exceto pelo último bloco, a conexão do público com os personagens e seus dilemas acontece de forma rápida, e então, quando estamos investidos na história, esperando por uma maior exploração dos fatos e encaminhamento compassado para a finalização, a trama simplesmente acaba e nos deixa a ver navios, com uma imensa sensação de vazio diante de um roteiro que não se completa e que provavelmente é condescendente demais consigo mesmo ao levar a justificativa de que “são apenas crônicas no meio de uma história maior“. Não existe, contudo, “uma história maior“. O filme é composto de crônicas e de um prólogo e epílogo que servem para conectar atmosferas, mas o caráter divisório, segmentado, está o tempo inteiro ativo. Por que deixá-los reticentes, então?

O espectador verá aqui elementos do cinema de Jacques Tati, referências a Crime em Paris (1947), de Henri-Georges Clouzot, piscadelas para Jean-Luc Godard e programas de TV dos anos 1970. É um filme que utiliza distintas plataformas de exibição para mostrar estilos diferentes de se fazer jornalismo, conseguindo algo dificilmente superado em direção de arte. Vale também destacar o belíssimo trabalho de Alexandre Desplat, que traz influências musicais de Erik Satie e Thelonious Monk, logrando uma unidade que infelizmente o enredo não consegue. Não há uma única contestação de que A Crônica Francesa é um filme fortíssimo em termos técnicos, especialmente no visual. Mas criou-se nele um abismo entre o que deveria ser o seu conteúdo e aquilo que lhe dá sustentação. Sem uma boa interação entre essas duas partes, não é possível haver um filme com superlativos, o que no caso de Wes Anderson e no caso da qualidade visual da obra que aqui temos, é um fato de carga colossalmente frustrante.

A Crônica Francesa (The French Dispatch) — EUA, Alemanha, 2021
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola, Hugo Guinness, Jason Schwartzman
Elenco: Benicio Del Toro, Adrien Brody, Tilda Swinton, Léa Seydoux, Frances McDormand, Timothée Chalamet, Lyna Khoudri, Jeffrey Wright, Mathieu Amalric, Steve Park, Bill Murray, Owen Wilson, Bob Balaban, Henry Winkler, Lois Smith, Tony Revolori, Denis Ménochet, Larry Pine, Morgane Polanski, Christoph Waltz, Cécile de France, Guillaume Gallienne, Willem Dafoe, Liev Schreiber, Edward Norton, Saoirse Ronan, Elisabeth Moss, Griffin Dunne, Anjelica Huston
Direção: 107 min.

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