A Criação de O Poderoso Chefão é uma crônica razoavelmente curta que Mario Puzo escreveu em 1972, ano de lançamento do filme cujo roteiro co-escreveu com Francis Ford Coppola e que foi publicada pela primeira vez no mesmo ano como parte de The Godfather Papers and Other Confessions (lançado por aqui, no mesmo ano, como Confissões de Mario Puzo e Revelações Sobre O Chefão), livro composto de pequenos contos e crônicas de Puzo baseados em sua experiência cotidiana com os mais diferentes assuntos. Mais tarde, em 2013, essa crônica foi republicada separadamente nos EUA como The Making of the Godfather – An Original Essay, com prefácio de Ed Falco, que, em 2012, escreveu A Família Corleone, romance prelúdio baseado em roteiro não produzido de Puzo.
O título A Criação de O Poderoso Chefão pode desapontar quem quiser detalhes sobre como Puzo escreveu o livro e, depois, começou a trabalhar no roteiro do filme e, em seguida, em sua efetiva produção, pois o que o autor faz é usar de uma maravilhosa abordagem cínica, irônica e, diria, até satírica, para lidar com sua própria visão sobre as injustiças das indústrias literária e cinematográfica. Ler a breve crônica de algo como 80 páginas é ter a precisa ideia de como o autor se sentiu quando partiu para escrever O Poderoso Chefão e como houve o salto para Hollywood, em que suas agruras intelectuais basicamente continuaram.
Com isso, a obra é agridoce. Há humor constante, mas um humor ácido, rabugento, escrito de maneira elegante, mas completamente informal, como se ele estivesse literalmente falando – ou confessando – para seus leitores. E, temos que lembrar, ainda em 1972, antes de O Poderoso Chefão tornar-se o fenômeno cinematográfico que se tornaria provavelmente breves meses depois e antes de aparecer repetidas vezes nas mais diversas listas de melhores filmes da História do Cinema. Afinal, o sucesso estrondoso de algo que você tenha criado não necessariamente apaga o processo complicado e injusto que foi sua criação literária, sua licença para a Paramount e sua recriação na forma de roteiro cinematográfico. Se alguma coisa, o sucesso pode até amplificar a injustiça.
Sobre o processo de escrita do livro, o que Puzo diz pode surpreender muita gente. Antes de O Poderoso Chefão, ele havia escrito três romances, A Guerra Suja, em 1955 e O Imigrante Feliz, 10 anos depois, em 1965, e Seis Túmulos para Munique, em 1967. Essas foram as obras que, segundo Puzo, ele escrevera por amor à arte considerando-as, especialmente a segunda, criações intelectuais “genuínas”, por assim dizer. No entanto, todas foram fracassos de venda, ainda que, no caso de O Imigrante Feliz, ele basicamente acuse a editora de só lhe ter pago 30% dos royalties devidos, algo que ele ironicamente a ônus do negócio. Cansado disso, ele resolveu escrever algo para fazer sucesso, diferenciando muito bem arte de comércio em sua cabeça. O Poderoso Chefão, que diversas editoras lhe recusaram adiantamento para poder escrever com algum apoio financeiro entrando, foi, para ele, o artista baixando a cabeça ao dinheiro ou a arte abrindo espaço para o vil metal e uma obra que ele escreveu não com conhecimento de causa sobre a maneira como as famílias mafiosas atuavam nos EUA, mas sim com muita pesquisa com o objetivo de escrever a obra. O fato de o livro ter feito sucesso – tirando-lhe finalmente da penúria em que vivia, com seu irmão o tempo todo tendo que ajudá-lo ao ponto de ele tê-lo pago de volta com 10% de tudo que ganhou com a obra – não foi nada mais do que sal na ferida, a revelação, para ele, de algo que nós lá no fundo sabemos bem, mesmo não sendo autores: que o que o público quer mesmo, aquilo que realmente faz sucesso, é a obra mediana, aquela que não pode ter aspirações muito maiores do que ser “divertida”.
Com os direitos cinematográficos vendidos por seu agente literário anterior – que ele acabara de demitir, aliás – por míseros 12.500 dólares, mais outro negócio que ele irônica e sarcasticamente reputa à algo comum e que, portanto, ele não via malícia e estava de bem com aquilo, a produtora começou a trabalhar em um filme de orçamento razoavelmente modesto, no máximo um milhão de dólares, ainda sem grandes nomes ligados a ele. Puzo foi chamado para Los Angeles para escrever o roteiro antes de Francis Ford Coppola embarcar no projeto e ele ganhava 500 dólares por semana para seus gastos, valor esse que era consumido integralmente pelas diárias do hotel que decidiu ficar. Foram semanas e semanas, segundo ele, não fazendo muito mais do que jogar golfe, com seu trabalho efetivo sendo adiado constantemente.
Percebe-se o desgosto de Puzo enquanto ele escreve sua crônica, mas que ele disfarça com humor constante e uma série de anedotas impagáveis, a mais famosa delas talvez sendo seu encontro com Frank Sinatra que, claro, se via em Johnny Fontane, algo que Puzo, hilariamente, nunca desdiz, aliás. Sinatra, de acordo com Puzo, não queria conhecê-lo justamente por essa razão, mas o encontro acabou acontecendo sem querer em um jantar em que os dois estavam e que o anfitrião, ignorante da pendenga já existente, resolveu apresentá-los somente para o cantor explodir diante do escritor com um desfile colorido de palavrões. Mas Puzo, assim como entende ter sido engrupido por editoras, agentes literários e pelo estúdio, também compreende Sinatra e, claro, está perfeitamente “de boa” com isso.
É muito interessante ver Puzo falar sobre de quem é o filme. Ele começa pragmático, claramente compreendendo que o que o roteiro que ele estava prestes a começar a escrever era para um filme do estúdio, não dele, mesmo considerando que a base literária é inequivocamente dele. Mas o processo que ele relata o faz pender ora mantendo seu pragmatismo inicial, ora percebendo que talvez sim, o filme seja pelo menos parcialmente dele, afinal. Um desses momentos é quando ele faz esforço para que Marlon Brando seja escalado como Don Vito Corleone, o primeiro e único ator que ele vislumbrou para viver seu personagem. Ainda que ele aborde pouco como foram os detalhes que levaram à efetiva escalação de Brando e o quanto sua voz foi ouvida, são relatos assim que fazem o autor aproximar-se do produto audiovisual do qual estava fazendo parte, como um pai aproximando-se de um filho há muito afastado.
Eu não duvido nada que A Criação de O Poderoso Chefão seja parte ficcional, com Puzo elegendo, para fins literários, tornar sua breve crônica mais interessante e quente do que talvez tenha sido, com embelezamentos – e “enfeiamentos” – aqui e ali, mas o subtexto nada sutil é claro e ele se mostra insatisfeito primeiro com um sistema mais forte do que ele que o fez abrir mão do que ele considera como arte e, depois, com o caminho que o levou à paternidade de uma obra – então ainda meses distante de sua aclamação universal – que é, mas ao mesmo tempo não é dele, com tudo o que nós sabemos que isso significa em Hollywood. O desabafo de Puzo é, portanto, ao mesmo tempo uma história de sucesso e de decepção, com o autor usando sua verve literária para jogar no colo do leitor a escolha sobre o que ele realmente sentiu a partir do momento em que decidiu escrever “para ganhar dinheiro” até ver sua obra transformada em um filme que, mal sabia ele, marcaria para sempre a indústria cinematográfica.
A Criação de O Poderoso Chefão (The Making of the Godfather – An Original Essay, EUA – 1972)
Publicada originalmente em: The Godfather Papers and Other Confessions
Publicada separadamente em: The Making of the Godfather – An Original Essay (com prefácio de Ed Falco)
Publicada no Brasil em: Confissões de Mario Puzo e Revelações Sobre O Chefão
Autor: Mario Puzo
Editora original: G. P. Putnam’s Sons
Data original de publicação: 1972
Editora da crônica separada: Grand Central Publishing
Data de publicação da crônica separada: 23 de abril de 2013
Editora no Brasil (livro completo): Editora Expressão e Cultura
Data de publicação no Brasil: 1972
Tradução: Stella Alves de Souza
Páginas: 80 (somente a crônica), 272 (livro completo)