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Crítica | A Cor Púrpura (2023)

Nova versão musical, mesmos problemas.

por Kevin Rick
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Em 1985, Steven Spielberg mostrou uma nova faceta de seus talentos como diretor no denso drama de A Cor Púrpura, uma adaptação do livro homônimo de Alice Walker que acompanha uma história trágica sobre racismo, abuso e violência doméstica. Quase quarenta anos depois, o cineasta retorna para o mesmo material, dessa vez apenas como produtor de uma nova versão cinematográfica que, por sua vez, é adaptada de uma reimaginação do livro para um musical da Broadway. Diferente de grande parcela do público, não considero a versão de Spielberg uma obra-prima, por diversos problemas pontuados por meu colega Fernando Campos na própria crítica que temos no site, mas ainda é um bom longa-metragem que trata de temas importantes em um conto visceral e emocional de revirar o estômago de qualquer pessoa.

E não é diferente na reimaginação musical, uma vez que acompanhamos a mesma trajetória angustiante de Celie (Fantasia Barrino), uma mulher negra que sofre abusos de seu pai e, posteriormente, de seu marido “Mister” Albert Johnson (Colman Domingo). Da infância à vida adulta, Celie é refém de homens maus e de uma sociedade negligente às suas atribulações. A protagonista encontra conforto na esperança de reencontrar sua irmã Nettie (Halle Bailey), que fugiu do ambiente violento do sul dos Estados Unidos, e na presença da cantora Sugar Avery (Taraji P. Henson), uma diva que encanta Celie em sua independência e sensualidade.

Algo particularmente notável na construção do arco de Celie é sua passividade. Por não ter parâmetro, escolha ou ajuda na maioria dos momentos de sua vida, a personagem simplesmente aceita essas situações de abuso, o que cria um cenário dramático cruel em suas passagens do tempo que repetem os mesmos sofrimentos e as mesmas violações, ao ponto de ser algo “normal” e rotineiro. Existe algo intensamente impiedoso nesse tipo de narrativa, num status quo perverso que enfurece a audiência, abrindo a oportunidade para uma série de desenvolvimentos dramáticos interessantes e profundos sobre autodescobrimento, resiliência e autonomia numa embalagem de coming-of-age que parece eterna nos graduais fios de cabelo branco e nas rugas que aparecem nos personagens.

Esse tipo de conto, porém, levanta desafios, sendo o principal deles a representação de Celie. É difícil encontrar personalidade em uma personagem que é retratada como uma vítima quase no filme inteiro, fazendo com que nos emocionemos por ela, mas dificilmente encontremos traços particularmente interessantes em sua personagem. Talvez soe insensível, mas Celie é apática ao ponto de dificultar uma identificação com sua própria tragédia, algo melhor enfatizado pelo fato das personagens ao seu redor serem substancialmente mais intrigantes, como Nettie, Sugar e até Sofia (Danielle Brooks), uma mulher complexa que enfrenta a violência de frente ao ponto de se tornar violenta.

Outro ponto a ser levantado é o sentimentalismo. Considerando o material pesado, não é fácil fugir de armadilhas sentimentalmente artificiais que gritam para a audiência “chora, chora, chora“, algo que acontece em diversos momentos da obra. O cineasta Blitz Bazawule não tem um tato para o drama meditativo que essa história requer, de deixar o horror ser absorvido pela audiência como a tempestade silenciosa que Celie está passando, até mesmo na maneira como não consegue passar a intensidade de determinadas cenas, como quando a protagonista enfrenta Albert ou pelo simples fato de grande parte do abuso acontecer fora de tela. Até mesmo a construção dramática de determinados personagens, como a redenção de Albert, a participação de Squeak (H.E.R.) e a disfunção de Harbo (Corey Hawkins) soam abruptas ou subutilizadas.

A produção ainda emociona, claro, mas falta uma certa profundidade dramática. Parcialmente, isso é “culpa” da maneira como Bazawule quer incorporar o lado musical à história, sempre em representações líricas festivas, coloridas e altas. Os números musicais são lindos e bem coreografadas na mescla de soul, jazz e blues das composições alegres e tocantes em cenários expressivos, mas parecem fora de tom, sempre nos tirando do sentimento de opressão que é essência de grande parte da narrativa. Quando Celie encontra sua liberdade e sua voz, a proposta faz mais sentido, incluindo um ato solo comovente da protagonista quando descobre amor próprio, bem como nas passagens que envolvem a irmandade entre mulheres negras, com destaque para a lasciva Sugar e a imponente Sofia que ganham alguns dos melhores números musicais da produção.

É interessante como a nova versão de A Cor Púrpura, apesar de ser um musical, compartilha da mesma leitura romântica e doce da obra de 1985 para um material denso, também compartilhando os mesmos problemas de tom e profundidade dramática. Ainda assim, é inegável o efeito emocional do retrato de dor e perseverança de Celie, em uma vida marcada por adversidades infelizmente inerentes à vida real de tantas vítimas, com um ato final de volta por cima e maturidade que fecha com uma nota de alegria e fé a representação dos temas religiosos da produção para a audiência ser finalmente recompensada com choros de alívio e felicidade.

A Cor Púrpura (The Color Purple) – EUA, 08 de fevereiro de 2024
Direção: Blitz Bazawule
Roteiro: Marcus Gardley (baseado no livro homônimo, de Alice Walker)
Elenco: Taraji P. Henson, Danielle Brooks, Colman Domingo, Corey Hawkins, Gabriella Wilson “H.E.R.”, Halle Bailey, Louis Gossett Jr., Phylicia Pearl Mpasi, Ciara, Jon Batiste, Aunjanue Ellis-Taylor, Fantasia Barrino
Duração: 141 min.

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