É impressionante o que o sucesso pode causar. Robinson Crusoé, clássico escrito por Daniel Defoe e lançado originalmente em 1719, foi responsável pelo surgimento de um subgênero literário, batizado de Robinsonada, sobre pessoas perdidas em lugares inóspitos. Swiss Family Robinson, romance escrito pelo autor suíço Johann David Wyss quase um século depois da obra de Defoe é, potencialmente, um dos mais famosos exemplos do gênero criado, além de ser representativo do fenômeno, já que o sobrenome da família que naufraga e acaba em uma ilha paradisíaca nunca é mencionado, com o “Robinson” do título original sendo uma direta e inescapável alusão ao livro “original” (como curiosidade e para mostrar também a relevância do livro de Wyss, quem acabou batizando a família – de Zermatt, vale dizer – foi ninguém menos do que Jules Verne em 1900, em uma continuação não oficial batizada de Segunda Pátria, um dos vários livros do gênero Robinsonada de Verne, aliás)
Todo esse contexto é importante para tratar da versão de 1940 de A Cidadela dos Robinson (novo título do filme originalmente lançado por aqui como Robinson Suíço, exatamente como é o título do romance de Wyss em português), pois o longa foi a primeira adaptação ocidental da imortal obra que, além das continuações literárias que ganhara, incluindo a de Verne, viria a receber uma enorme quantidade de adaptações audiovisuais, seja na forma de longas-metragens, seja na de séries de TV, incluindo a famosa franquia Perdidos no Espaço (“Perigo, Will Robinson, perigo!”). O caminho proposto pelo roteiro de C. Graham Baker, Walter Ferris e Gene Towne é o da mais completa simplicidade, o que, na verdade, reflete as conveniências do romance que cria uma ambientação altamente conveniente e “fácil” para a família náufraga composta de um pai, uma mãe e quatro filhos de todos “blocos de idade”. Além disso, a naturalmente antiquada visão de família religiosa de estrutura patriarcal comanda o longa assim como comanda o romance, com William Robinson (Thomas Mitchell) determinando, na base da canetada, sem nenhuma conversa familiar, o futuro de todos que vivem confortavelmente em uma mansão londrina (a ambientação inicial em Londres de uma família originalmente suíça é feita para “justificar” o sobrenome Robinson que é efetivamente usado na fita).
Com isso, William, temeroso pela dominação “do mundo” por Napoleão e para viver mais em conexão com o mundo natural, força a partida de todos – quase que literalmente da noite para o dia – para as colônias britânicas na Austrália, com o naufrágio, retratado também da maneira mais suave e conveniente do mundo, impedindo-os de chegar ao destino e tornando-se a moradia dos Robinson que, ato contínuo, passam a construir a tal “cidadela” do título com habilidades mágicas que vão da efetiva construção de casas, passando pela cura de pele animal e montagem de um sistema de irrigação, que o roteiro tira do chapéu sem a menor cerimônia ou tentativa de explicação. A abordagem é tão machista que chega a ser hilária, com o pai e os três filhos mais velhos (o filho menor mal se locomove, mas, quando o faz, faz com toda a destreza possível) não tendo problema algum para se adaptarem às novas tarefas e necessidades, mas a mãe tendo problemas básicos para cozinhar e costurar já que sempre foi “dondoca” e nunca botou a mão na massa.
A produção americana originalmente distribuída pela finada RKO Radio Pictures (a mesma que lançaria Cidadão Kane no ano seguinte), porém, é refinada e cuidadosa em termos visuais. Mesmo com as filmagens essencialmente em estúdio, a recriação da impossível ilha paradisíaca com suas gigantescas árvores e belos riachos é impressionante, algo alcançado com pinturas de fundo de imensa qualidade que não devem nada às pinturas matte que seria desenvolvidas algum tempo depois. Nesse particular quesito, percebe-se que não houve economia e o efeito alcançado é semelhante ao de King Kong, de sete anos antes (e, não sem querer, também da RKO). Por outro lado, a insistência no uso dos figurinos “civilizados” pelos Robinson por grande parte da fita quebra substancialmente a imersão, especialmente os elaborados vestidos da matriarca Elizabeth Robinson (Edna Best) e os impecáveis ternos do protótipo de metrossexual Jack Robinson (Freddie Bartholomew), o segundo filho mais velho.
A passagem temporal é acanhada. Muito diferente do que acontece no livro, o tempo de permanência dos Robinson na ilha é acanhado, mas de difícil definição em razão do uso de elipses que confundem o espectador por mostrar evoluções tecnológicas com um estalar de dedos. Se em uma sequência vemos o abrigo começando a ser construído, no momento seguinte ele não só foi construído, como é repleto de comodidades exageradas que são, como o machismo que mencionei acima, inadvertidamente hilárias. O ponto é que, mesmo considerando a tempestade que eles enfrentam (aliás, também muito bem feita) tudo parece ser uma aventura de férias em ambiente altamente controlado, como um safári em que o “cliente” jamais sequer coloca os pés para fora do carro.
Não se pode dizer que a primeira versão cinematográfica ocidental de Robinson Suíço trai a essência da obra original, pois o que acontece é justamente o contrário. No entanto, é precisamente por isso que havia um gigantesco espaço para que a produção trabalhasse um roteiro com uma costura melhor, que trouxesse soluções menos mágicas para cada problema e que criasse uma família mais relacionável do que um bando de gente rica passando férias em um resort em uma ilha paradisíaca.
A Cidadela dos Robinson / Robinson Suíço (Swiss Family Robinson – EUA, 1940)
Direção: Edward Ludwig
Roteiro: C. Graham Baker, Walter Ferris, Gene Towne (baseado em romance de Johann David Wyss)
Elenco: Thomas Mitchell, Edna Best, Freddie Bartholomew, Terry Kilburn, Tim Holt, Bobbie Quillan, Christian Rub, John Wray, Herbert Rawlinson, Orson Welles
Duração: 93 min.