A dupla de diretores baianos Cláudio Marques e Marília Hughes (sócios da produtora Coisa de Cinema) mais uma vez fazem um recorte na sociedade brasileira e investigam-na sob um viés humano necessário. Em Depois da Chuva (2013), eles mostraram isso em Salvador, no ano de 1984, em pleno levante das Diretas. Em A Cidade do Futuro (2016), dois temas se entrelaçam. Primeiro, a questão da identidade cultural dos habitantes da cidade de Sobradinho, Bahia, inundada para a represa. Esses habitantes foram realocados, sob mentira e pressão, em cidades vizinhas, deixando sua condição de ribeirinhos e mudando todo o seu estilo de vida. Em segundo, vem a questão das liberdades individuais, centrada no casal-tríade Mila, Gilmar e Igor.
O tema, como se vê a partir da foto promocional mais famosa da película, é polêmico para uma sociedade onde a sexualidade está diretamente ligada a cordões divinos, casamento e procriação. Claro que isso não é exclusivo do Brasil, mas no nosso caso, a despeito de toda a luta para que o respeito às diferenças seja dado, ainda persistem, em grande quantidade, os preconceitos e ações violentas contra qualquer um que sai do padrão tido como “normal” ou “divinamente natural”. Nada muito espantoso para um país majoritariamente cristão, correto? Pois bem, é justamente tomando a linha de frente em uma luta contra todo esse olhar tradicional de Serra do Ramalho, no sertão da Bahia, que o trio protagonista nos faz ver como é difícil assumir um compromisso e um relacionamento desse porte e lutar para mantê-lo.
Algo que a maioria dos espectadores perceberão ao terminar o filme é que o roteiro de Cláudio Marques poderia se estender um pouquinho mais e que, dado o resultado final do relacionamento e a força que a tríade vai ganhando nos diálogos, somado às situações que os acometem, o início da obra poderia ser menos professoral e mais firme na construção dos personagens. Aliás, como toda a questão de Sobradinho é colocada de maneira orgânica em sala de aula por um dos personagens, que é professor, os depoimentos dos moradores se tornam imediatamente desnecessários, pois reafirmam o que já houvéramos percebido, e isso vai travando ainda mais o roteiro.
Dada a enorme simpatia dos protagonistas, fica difícil não criar um vínculo emotivo com eles e acompanhar, com muita curiosidade, o desenvolvimento do drama do casal — questões internas que precisam ser resolvidas — e a forma como eles são rejeitados pela cidade onde moram. Há muitos (e bons) caminhos formais utilizados para isso, como a música de Gilmar e Igor, a belíssima representação fotográfica de Mila grávida e nuances do contato entre as três partes que poderiam ser ampliadas e que teriam muito mais sentido para o filme do que a quebra com o diálogo sobre a identidade dos deslocados de Sobradinho, ou cenas soltas, de quase nenhuma contribuição para a fita, como a aventura de Igor após “sumir por um tempo” da vida de Gilmar e Mila; a cena do banho ou do peixe, que apesar da óbvia metáfora para o personagem, acaba sendo, ela mesma, o que quis dizer.
Trazendo um tabu muito conhecido para a tela, Cláudio Marques e Marília Hughes conseguem capturar bem a nossa atenção. O tema é forte, trabalhado com bastante cuidado, mas está mais disperso do que deveria, especialmente no início. A fita ainda se beneficiaria com um melhor trabalho com os atores, especialmente Igor Santos, mas as atuações do modo como estão aqui, têm seu charme. A obra termina em um momento que nos faz pedir por mais, e isso é um ponto positivo, em geral, embora seja uma reticência amarga, pois vem em um momento onde o filme estava grande demais para acabar. Mesmo assim, a proposta é válida, tem um bom resultado final, e nos faz pensar sobre as duas camadas sugeridas para esta tão sonhada “cidade do futuro”.
A Cidade do Futuro (Brasil, 2016)
Direção: Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro: Cláudio Marques
Elenco: Mila Suzart, Gilmar Araujo, Igor Santos
Duração: 75 min.