Embora oferecesse uma caixa de representações, Lya Luft nada queria definir ao lançar o seu penúltimo livro em 2017, A Casa Inventada, onde deixava uma advertência: “não queiram me prender no alfinete da interpretação”, e essa que era sua primeira obra que eu tinha contato, o aviso agia como um lembrete a fuga que a leitura oferecia, no convite para conhecer o imaginário íntimo de suas experiências na casa que inventava — e que em vários momentos, falava também ao leitor, sobre a casa que inventamos, vivemos.
A prosa que envolvia o livro não era algo incomum ao estilo da autora, isso é, o exercício poético de traçar uma reflexão, metáforas sobre o complicado processo de viver. E a autora dividiu os capítulos como os cômodos a serem explorados, cada canto, cada mililitro, além do espaço físico, uma casa sobre a existência; mas o que encontramos quando nos debruçamos a espiar o espaço que ela inventa — ou não —, os pensamentos, as memórias boas e ruins, as dores, as fraquezas? Porém, essa não é visita que para apenas às vivências, uma vez que ressoa bem no fundo das nossas lembranças, enquanto leitores: o que descobriremos se olharmos para o interior da casa que construímos e habitamos continuamente?
É uma construção constante, que revela novas mudanças todos os dias, convenhamos. E nem sempre é uma tarefa que queremos pôr em prática: a mudança. Ignoramos, deixamos para depois. Esse é um dos exemplos que Lya transmite com uma delicadeza única, onde não só compartilha suas memórias através de metáforas, mas estende a mistura de ensaio e autoficção de sua obra para o leitor, que enquanto lê, faz o processo de se autovisitar, autocriticar, autoquestionar, autoconhecer — nunca deixa de existir uma descoberta diferente sobre nós mesmos, ou para o que julgamos saber. De repente, não é mais Lya escrevendo de suas recordações, e sim o leitor se pondo também como personagem e então experimentando o que inventa.
A abordagem de composição intimista que Lya trazia se tornava um movimento convidativo, onde era inevitável ler sobre sua infância e não pensar: “como eu era?“. Era leve, compreendido? Me tratavam como criança ou como ser humano? Quando comecei esse processo de olhar para a vida com um senso mais duro? Mesmo sendo a casa que projetamos, não nos conhecemos tão bem. O quarto que não gostamos de entrar, a porta que é melhor não abrir, o cômodo que seria melhor não ter começado a estruturar… Mas esse não é só um espaço de representação dos sentimentos, como uma casa, é também um lugar sobre as pessoas que um dia moraram, moram, visitam, interagem com ela. Há lembranças muito boas sobre o almoço, a confraternização em família, outras, nem tanto. A casa é morada para os amores, a mais bela amizade, os amigos que se tornam família.
Para Lya, em A Casa Inventada, nessa vida, nem tudo é questão de escolha: a outra metade é dos milagres. E junto com as incertezas, com todas as nossas inseguranças, tristezas, alegrias, prazeres e falhas, essa é a vida que inventamos — ou ela nos inventa? Tudo é um detalhe, um elemento que dá forma a uma metáfora sobre a existência, das lembranças dos traumas, e até do medo da morte. Mesmo se permitindo aos trechos de descontração, a penúltima obra da autora cumpria seu objetivo de falar da vida além da bolha da subjetividade, escrevendo um ensaio sobre as ansiedades do viver.
Talvez por isso, há quem diga que Lya Luft é um gênero, pela particularidade que se reconhece na sua escrita e pela forma que busca falar de conflitos, das ambiguidades da vida. E em cada capítulo, cada cômodo, do espelho para se autoencarar, se abriam como a caixa de Pandora — que Lya pegava o nome emprestado para falar em terceira pessoa — revelando contradições e fantasias do viver. Se eu inventar, o que vou descobrir ou redescobrir?
A Casa Inventada (Brasil, 2017)
Autor: Lya Luft
Editora: Record
Páginas: 117
