Em 1976 o peculiar horror italiano visitou A Casa das Janelas Sorridentes, tendo como linha narrativa principal a restauração de um mural numa igreja e um plot de crime consideravelmente diferente daquilo que normalmente se espera de um giallo, ou seja, um dos filmes que se propunha a experimentar com a fórmula. Em 1983 foi a vez de Carlo Lizzani fazer o mesmo, ao nos convidar para A Casa do Tapete Amarelo, filme que dá muito mais atenção ao elemento psicológico do enredo, dele retirando as reviravoltas e, a partir dele, corrompendo da melhor forma possível as expectativas do público.
As diferenças da presente obra em relação ao “giallo raiz” são tantas, que ela entra na lista de “isto não é um giallo, apesar de parecer” de um dos maiores estudiosos do gênero no mundo, o escritor Troy Howarth, que na mesma lista adiciona, dentre tantos outros filmes, A Breve Noite das Bonecas de Vidro (1971), O Perfume da Senhora de Negro (1974) e Os Passos (1975). Já na primeira parte de seu maravilhoso livro So Deadly, So Perverse: Giallo-Style Films From Around the World (2019), porém, o autor chama a atenção para um fato que eu já discuti aqui no Plano Crítico ao fazer a minha própria análise, classificação e estudo de gêneros ou escolas cinematográficas como Realismo Poético Francês, Cinema Noir, Neorrealismo Italiano, Cinema Novo Brasileiro, Cinema Marginal Brasileiro, etc.: alocar obras dentro de um recorte estilístico-narrativo ou de um gênero/subgênero não é uma ciência exata e, em muitos casos, conta com a subjetividade do espectador ou crítico. O mesmo movimento podemos ver na classificação de obras literárias dentro de alguns gêneros ou formatos; de alguns artistas plásticos dentro de uma determinada escola; de alguns músicos dentro de um determinado estilo. Em alguns casos, é fácil e perfeitamente possível fazer essa classificação. Em outros, ela vai depender do olhar e experiência de quem classifica, e desde que haja uma justificativa plausível para tanto, tal subjetividade é bem-vinda.
A Casa do Tapete Amarelo é, portanto, um giallo (na minha leitura) e isso começa com o flerte do diretor com o gênero desde o título (no original La Casa del Tappeto Giallo) e se estende para o uso de indumentária, objetos e base para o problema exposto no roteiro, tendo aqui o seu grande diferencial no escopo psicológico e no tom de farsa que são o grande atrativo da fita. Baseado na peça Teatro a Domicílio, de Aldo Selleri, a obra tem um elenco mínimo (apenas quatro atores principais, dentre eles, o incrível Erland Josephson) e uma trama que parte de um evento banal — o ciúme de um marido — e termina como um estudo comportamental e extremamente irônico sobre o processo de análise psicanalítica, com a personagem de Béatrice Romand (Franca) sendo “tratada” por meios nada ortodoxos, enfrentando um trauma e um desejo que faz seu esposo Antonio (Vittorio Mezzogiorno) arder de ciúmes.
A câmera muitas vezes filma os personagens como se fossem ratos numa gaiola, reforçando a abordagem claustrofóbica do texto, mais a sua condição dramatúrgica, que não disfarça a influência teatral e nem as muitas mentiras que são contadas em diferentes blocos, cada uma levando a comportamentos suspeitos ou ameaçadores, deixando o público esperando pelo pior e inteligentemente frustrando parte dessas expectativas, substituindo-as por resoluções menos chocantes, mas não menos interessantes. A estética também segue a brincadeira de mostrar uma situação ou atmosfera conhecidas dos gialli e retrabalhá-las para dar a percepção de grande opressão, medo e avizinhamento da violência, especialmente no bloco de “sequestro”, o mais angustiante da fita.
Sugestões de fantasia ligadas ao famigerado tapete amarelo — e posteriormente contextualizadas de outra forma — mais o choque constante com a realidade encontram-se com aquilo que o filme tem de melhor: as surpresas do roteiro, as boas atuações e o simbólico papel de autoridade e às vezes de manipulação que algumas pessoas exercem sobre as outras, mesmo que à distância. A Casa do Tapete Amarelo é um suspense psicanalítico cheio de interessantes atributos visuais inerentes à escola que pertence (embora esses elementos estejam refigurados no uso) e uma narrativa que nos traz boas surpresas a cada esquina. Um filme com mudanças de abordagem que exemplificam as transformações do giallo naquele início de anos 1980, condição iniciada na década anterior e que se tornaria a peça-chave do gênero até os raros exemplares em nossos dias.
A Casa do Tapete Amarelo (La Casa del Tappeto Giallo / The House of the Yellow Carpet) — Itália, 1983
Direção: Carlo Lizzani
Roteiro: Filiberto Bandini, Lucio Battistrada (baseado na peça de Aldo Selleri)
Elenco: Erland Josephson, Béatrice Romand, Vittorio Mezzogiorno, Milena Vukotic
Duração: 89 min.