- Há spoilers. Acessem, aqui, todo o nosso material de Game of Thrones.
A Casa do Dragão é uma série lançada sob uma situação complicada. Por mais injusto que seja, a obra precisa tirar o gosto amargo que ficou na audiência após o final desastroso da oitava temporada de Game of Thrones, ao mesmo tempo que é cobrada para estar à altura das primeiras temporadas de uma das melhores séries de todos os tempos. Os showrunners Ryan J. Condal e Miguel Sapochnik receberam uma tarefa praticamente impossível da HBO, uma vez que grande parte dos telespectadores e fãs deste universo vão começar a série esperando decepção e cobrando excelência. Eu, no entanto, só queria uma boa introdução de Os Herdeiros do Dragão.
Ambientada 172 anos antes dos eventos de Game of Thrones, a série cobre um período de tempo conhecido como a Dança dos Dragões, onde uma guerra civil entre a dinastia Targaryen destruiu Westeros. Como normalmente acontece, o primeiro episódio serve para estabelecer a narrativa e introduzir personagens, como o rei Viserys Targaryen (Paddy Considine); o impulsivo príncipe Daemon (Matt Smith); a Mão do Rei, Otto Hightower (Rhys Ifans), e sua filha Alicent Hightower (Emily Carey); a princesa Rhaenyra Targaryen (Milly Alcock); e outros personagens coadjuvantes que ainda não conhecemos tão bem. A premissa da história é simples e habitual: a luta pelo poder do Trono de Ferro.
O começo com voice-over apresentando a história é uma escolha estranha para o universo de Game of Thrones, mas sintetiza o episódio como um todo, organizando os jogadores e o tabuleiro da temporada. Levando-se em conta as complicações que citei no início da crítica, é bastante claro como a equipe criativa decidiu jogar seguro, retornando para as qualidades básicas da série original: tramas palacianas, pequenas intrigas e traições, os conluios e reviravoltas nas cortes e casas, e, basicamente, todo o jogo de politicagem que fez Game of Thrones ser uma série de fantasia memorável.
A grande diferença do spin-off está justamente no escopo. As últimas temporadas de GOT prezaram mais o espetáculo das grandes batalhas e CGI, mas o início da série já tinha um senso enorme de escala, com a montagem voando entre as regiões de Westeros, da introdução de uma casa para a outra, com personagens passando temporadas e anos sem se conhecerem. Os Herdeiros do Dragão passa uma impressão diferente, com o foco estabelecido em Porto Real e num pequeno grupo de indivíduos.
Isso pode mudar ao longo da temporada, mas a proposta da série me parece ser mais voltada para o suspense político e muitos dramas familiares num contexto mais íntimo e menor, com tio e sobrinha brigando por sucessão; irmãos lutando pela coroa; uma prima renegada conspirando por trás das cortinas; e os vários conselheiros ambiciosos fazendo suas próprias tramoias. Eu adoro tudo isso, desde as palavras mordazes no sotaque britânico, o ótimo novelão familiar, até o brilhantismo de George R.R. Martin como conspirador político – ele, aliás, é creditado como um dos criadores da série e teve participação direta nos roteiros.
É bacana ver dragões voando e interagindo com humanos? Com certeza. Os cenários, sejam em locações naturais, sejam a produção das cortes, continuam lindas e imersivas? Absolutamente. Mas é tão bom saber que o seriado não vai se relegar às características básicas de fantasia. Nesse sentido, A Casa do Dragão se apresenta como uma série medieval encorpada, sobre a corrupção dos homens e a tirania de lordes, sobre ascensão e sucessão, e principalmente sobre o papel feminino neste tipo de cenário, seja através da inteligente montagem do parto de Aemma (Sian Brooke) com o torneio sobre as diferentes batalhas de gênero, seja a ótima introdução e presença de Rhaenyra (e também Alice) – as duas me lembraram bastante as fenomenais Daenerys e Sansa.
Aliás, um dos grandes destaques do primeiro episódio está no estabelecimento de personagens multidimensionais. Daemon não é apenas o irmão ambicioso do rei, com a série tomando tempo e paciência para demonstrá-lo como um tio carinhoso e uma personalidade turbulenta. O mesmo vale para Viserys, longe de ser apenas a caricatura do rei burro e tirano, assim como Otto Hightower se mostra um dissimulador super interessante. Não há espaço para moralismos ou maniqueísmos neste universo, apenas personagens com muitas camadas.
Gosto bastante da sutileza de algumas cenas para isso, com muitas conversas íntimas e diversas dinâmicas familiares, como a cena que Alice conforta o rei (uma sequência que começa com choque no pedido de Otto, se sustenta em tensão, e acaba com ternura) ou quando Rhaenyra recebe o título de herdeira do pai, com um retrospecto intrigante sobre árvore genealógica e mitologia (tudo voltado para os Targaryens). Existe um nível de pessoalidade e dramas com nuances muito interessantes aqui, algo que o elenco expressa com cuidado através de olhares ora comoventes, ora maléficos.
Também gosto bastante de como o episódio se utiliza do sexo e violência, menos para o lado gráfico que traz euforia superficial para muita gente, e mais para um lado de impacto emocional e dramático, como a montagem do parto que citei. Mas notem, por exemplo, o comportamento de Daemon durante a cena da orgia, olhando com um certo desdém e nojo para o evento, como se ele não fizesse parte daquele local, ao mesmo tempo que precisa engolir seu luto para celebrar com seus subalternos. Isso é boa dramaturgia, nos contando sobre os personagens nas entrelinhas e em seus comportamentos, não apenas em diálogos expositivos – A Roda do Tempo podia tomar notas…
Minha única ressalva com Os Herdeiros do Dragão é a sensação de familiaridade, como se o roteiro não quisesse tomar riscos para contar sua história. Mas, bem, é o proverbial “menos é mais”, com um episódio de estreia que resgata a essência da série original esquecida nos seus últimos anos, fazendo uma introdução eficiente para outro período de tempo em Westeros com personagens com potencial de serem fascinantes. O design de produção está deslumbrante, a trilha sonora continua suntuosa e retornar a este mundo de fantasia é reconfortante, mas o maior destaque do episódio de estreia é o cuidado do roteiro para estabelecer uma intriga palaciana que desperta curiosidade, personagens verdadeiramente complexos e o início de uma nova luta por poder. Acredito que será uma jornada fantástica pela História e dinâmicas familiares da Casa do Dragão.
A Casa do Dragão – 1X01: Os Herdeiros do Dragão (House of The Dragon – 1X01: Heirs of the Dragon) | EUA, 218 de agosto de 2022
Criação: Ryan J. Condal, George R. R. Martin
Direção: Miguel Sapochnik
Roteiro: Ryan J. Condal
Elenco: Paddy Considine, Matt Smith, Emma D’Arcy, Rhys Ifans, Steve Toussaint, Eve Best, Sonoya Mizuno, Fabien Frankel, Milly Alcock, Emily Carey, Graham McTavish
Duração: 66 min.