Era uma vez um conto trágico, escrito no século XIX. Um dia, o designer de produção Arturo Uranga o encontrou. “Tem um conto do Machado de Assis sensacional, bem pequeno, cujo final é trágico. Não quer ler?”, perguntou o Pablo Uranga ao jornalista Wagner Assis. Seduzido pelo convite, Assis leu e gostou. Desta bela história nasceu o filme A Cartomante, uma produção que diferente dos bastidores e da boa vontade dos envolvidos, não é tão bela assim.
Acredito que o meu interesse por A Cartomante seja puramente acadêmico. Quando conheci o filme, a proposta era pensa-lo dentro dos estudos de tradução intersemiótica, um campo teórico que trabalha com uma análise nada superficial dos processos de deslocamento de uma obra entre um suporte e outro. Livros que se tornam filmes, games ou séries; peças teatrais que são adaptadas para a televisão, etc. Desta forma, gostando ou não, o trabalho de análise entre o conto e o filme nos aproximou, o que por sua vez, não me impediu de analisar a obra com o devido distanciamento e perceber que mesmo tendo alguns pontos interessantes ao atualizar o famoso conto, o filme peca bastante por não conseguir dar conta de elementos mínimos da linguagem do cinema.
Em A Cartomante, Rita (Deborah Secco) encontra-se perdidamente apaixonada por Camilo (Luigi Barricelli), o amigo de infância de seu noivo, o médico Vilela (Ilya São Paulo). Mergulhada num turbilhão de incertezas, a moça decide procurar uma cartomante, mas percebe que os seus conselhos são diferentes do que a sua psicóloga, Dra. Antônia (Silvia Pfeifer) fornece constantemente.
Para entender como eles se conheceram, precisamos adentrar mais no roteiro. O filme começa com o personagem de Luigi Barricelli numa boate, tentando se aproximar de uma misteriosa e “sedutora” mulher, interpretada no automático por Giovanna Antonelli, uma atriz num momento pouco oportuno da sua carreira, tamanha a falta de coerência e qualidade do seu personagem, bem como da sua performance constrangedora.
Depois de uma conversa na boate barulhenta eles seguem para o apartamento da moça. Ao chegar lá, o rapaz descobre que entrou numa “furada”. Viciada em esctasy e bêbada, a personagem de Antonelli o agride de várias formas, alegando que ele “fará o que ela quiser”. Resultado: a noite acaba mal e dopado, Camilo entra em coma por overdose, hospitalizado logo adiante.
No hospital, quem salva a sua vida é Vilela, médico que por coincidência, é seu amigo de infância. Ao sentir que o amigo precisa de apoio, o médico decide aproximar-se, o que por tabela, traz a indecisa Rita, apresentada durante um jantar peculiar em que eles comem miojo, o que culminará no drama que se arrastará por 90 minutos. Afoitos pelo fogo da paixão, Rita e Camilo se perdem na relação perigosa, traem Vilela e entram num perigoso território de mentiras.
No conto de Machado de Assis, as dúvidas que envolvem Rita e Camilo são comuns ao contexto histórico, mas as atitudes dos personagens, em seus respectivos contextos, não tornam as suas incertezas verossímeis, ao contrário, ás vezes soam como piada. O desfecho é tão estranho que prefiro deixar a análise por parte do leitor, que provavelmente vai ter que colocar este filme na lista da próxima maratona, tamanha a “aura insólita” que o cerca. Os personagens são tipos que seriam interessantes caso tivessem sido bem formulados. Infelizmente não são.
Publicado em Várias Histórias, coletânea do escritor realista, a obra discute questões como a análise psicológica das relações humanas, numa espécie de crítica aos padrões de comportamento da época. Metalinguístico, o conto nos faz participar da ação, num constante uso de metáforas, associada ao caráter ambíguo dos personagens, mergulhados numa ação que busca a todo tempo prolongar o suspense. Tantos elementos carregados de potência dramática, desperdiçados em uma tradução que prefere caminhar pelo óbvio, deixando de lado os principais elementos que caberiam perfeitamente numa leitura contemporânea de um dos maiores escritores da nossa história literária.
Mesmo com tantos problemas, o filme tem uma história interessante. Inicialmente seria uma produção de época, mas como o dinheiro do financiamento não entrou, Wagner Assis praticamente escreveu um segundo roteiro, o que nas palavras de Silvia Pfeifer, também envolvida na produção, “era praticamente um roteiro original”. Como descrito no roteiro do filme, publicado como livro pela Coleção Aplausos, a produção “nasceu da vontade de contar uma história no cinema através do formato longa-metragem, depois de tantos anos de vídeos caseiros e curtas guardados na gaveta”. As intenções eram ótimas, mas infelizmente o resultado não chega nem próximo do razoável, no entanto, não havia muito a esperar, afinal, Wagner Assis vinha de produções igualmente vergonhosas do nosso cinema, tais como Xuxa Popstar e Xuxa e os Duendes.
Diria que A Cartomante é um filme curioso, peculiar, um documento importante para o registro da nossa historiografia cinematográfica. Tradução intersemiótica diluída do conto homônimo de Machado de Assis, o filme A Cartomante, no geral, não é bem visto pela crítica. A trilha sonora beira ao caótico, o design de produção e os enquadramentos (principalmente a dinâmica entre os contra-planos) não conseguem alcançar o mínimo solicitado pelos manuais mais básicos de linguagem cinematográfica, além de alguns desempenhos de atores que já estiveram bem em outros personagens, mas que no filme em questão, apresentam-se comprometidos pelas falhas do roteiro que, na ânsia entre atualizar demais e continuar uma ligação direta com conto de inspiração, acaba se mostrando perdida dentro do caos estabelecido pelo próprio texto.
Apesar de comprometido pelo roteiro que não define e surge cheio de falhas, A Cartomante é um importante documento histórico para a memória do cinema brasileiro, pois revela uma fase típica da nossa produção industrial, ligada ao esquema que associa produções cinematográficas com foco no público televisivo. Deborah Secco e Luigi Barricelli formavam o casal protagonista da novela A Padroeira, exibida no horário das 18 horas pela TV Globo. Numa estratégia de marketing, muitos filmes da época atraiam o público consumidor de telenovelas através dos atores que protagonizavam tais dramas televisivos. Tal esquema, por sua vez, não era garantia de qualidade, não é a toa que A Cartomante é uma produção tão comprometedora quanto à novela citada.
A Cartomante — Brasil, 2004
Direção: RPablo Uranga, Wagner Assis
Roteiro: Wagner Assis
Elenco: Deborah Secco, Giovanna Antonelli, Ilya São Paulo, Luigi Baricelli, Mel Lisboa, Sílvia Pfeifer, Silvio Guindane
Duração: 90 min