Apesar de não ser um ávido leitor de conteúdo criado especificamente para ficar nas cada vez mais numerosas prateleiras de livrarias dedicadas aos Jovens Adultos, categoria sem dúvida muito lucrativa, minha experiência com a Trilogia Jogos Vorazes foi muito agradável. Suzanne Collins escreve muito bem e sua construção de mundo e desenvolvimento de personagens são sólidas, além de ela trabalhar de maneira econômica, sem enrolar demais como algumas séries enormes, com livros de mais de 500 páginas cada, tendem a fazer. Sim, a premissa que ela usa para a franquia pode até ser “batida” – sua inspiração em O Senhor das Moscas e Battle Royale, mesmo que distante, é inegável -, mas o que importa é como ela a executa e a jornada de Katniss Everdeen pareceu-me acima da média.
Quando A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes foi anunciado, fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz porque, por ser um prelúdio, Collins parece querer dizer que não pretende continuar a minerar sua protagonista, deixando-a descansar em paz. Triste porque eu muito sinceramente preferiria que a autora focasse seus esforços na criação de outra série literária e porque eu tenho a tendência de desgostar de obras que se esforçam para explicar – e por vezes até justificar – a maldade de personagens. Afinal, saber como Coriolanus Snow tornou-se o grande vilão da trilogia não era algo que me interessava, razão pela qual adiei até o último minuto a leitura do novo romance, só realmente embarcando na empreitada em razão da proximidade do lançamento do longa-metragem e, claro, a manifestação de meu T.O.C. martelando em minha cabeça algo como “se você já leu três dos livros, tem que ler todos os demais”.
A grande vantagem do prelúdio é que o Snow adulto da Trilogia Jogos Vorazes já não era apenas um mero vilão daqueles que se refestelava com a desgraça alheia. Havia algo a mais nele, algo que ficava imediatamente abaixo da superfície e que Collins fazia questão de deixar ali, como um pano de fundo misterioso para o vilanesco presidente da Capital. E, no romance que se passa 64 anos antes do primeiro livro da série Jogos Vorazes, em torno do 10º aniversário da punição anual dos Distritos por sua rebeldia e pela guerra que se seguiu, a escritora resiste à tentação de criar um personagem bonzinho, puro e perfeito que é corrompido pela maldade que o cerca ou pela tragédia que acaba passando. O Coriolanus Snow de apenas 18 anos a que somos apresentados em Cantiga já é um jovem egoísta, invejoso e capaz de qualquer coisa para reerguer sua família do estado de franca decadência em que ela se encontra depois que eles perderam a fortuna com a destruição do Distrito 13 onde ficava a fábrica do falecido pai.
Collins é cuidadosa em estabelecer isso de toda maneira que pode nos capítulos que antecedem a 10ª edição dos Jogos Vorazes e primeira a contar com mentores escolhidos dentre os mais promissores jovens da Capital, dentre eles Snow, claro, para guiar seus respectivos Tributos ao longo da luta pela vida deles. O protagonista pode até não ser exatamente um vilão completo nesse início, mas ele já carrega consigo todas as características que deixam evidente o quanto ele simplesmente não presta, com a autora realmente arriscando-se a construir um personagem com quem seus leitores provavelmente não se identificarão. Afinal, dizer que alguém se identifica com Coriolanus ou com os valores que ele defende é uma admissão problemática. Mas é por isso que eu acabei gostando de Cantiga. Nada de fazer somente o óbvio e nada de dourar a pílula. O que vemos é um jovem que sente profunda inveja de seu colega de escola Sejanus Plinth, cuja riquíssima família vem do Distrito 2, o equivalente ao “novo rico” em comparação com os “ricos tradicionais”, mesmo que Sejanus revele-se ser honesto e sensível, considerando Coriolanus como um verdadeiro amigo. Snow é, também, manipulador, usando sua beleza e simpatia para conseguir o que quer e para esconder o estado de pobreza de sua família – ele vive em um apartamento de luxo, mas decadente, sem dinheiro para comer direito, com sua avó paterna e sua prima Tigris, que provê para a família -, segredo que mais ninguém sabe, a não ser o reitor Casca Highbottom, viciado em morfina, creditado como criador dos Jogos Vorazes e inimigo da família Snow.
Em outras palavras, Collins parte de uma “tela” já pintada com cores sombrias e tristes e usa a mentoria de Snow nos Jogos Vorazes para, então, aprofundar essas características reprováveis (um eufemismo, claro) do personagem. O tributo que ele recebe para “cuidar” é Lucy Gray Baird, originalmente de um grupo nômade de música que, durante a guerra, foi obrigada a estabelecer-se no Distrito 12, e a jovem, desde sua convocação, já revela-se diferente, seja pelo vestido multicolorido que usa, seja pela serpente que esconde em seu figurino para se defender. Claro que o leitor deve esperar a clássica atração entre mentor e tributo, mas mesmo isso a autora trabalha tentando esquivar-se de meros clichês cansados desse tipo de abordagem, mantendo Snow resoluto em seu egoísmo extremo que só lhe permite fazer aqui que lhe beneficia direta ou indiretamente.
A própria 10ª edição dos Jogos Vorazes torna-se uma “história de origem” de certa forma, pois há um abismo de diferenças entre o que Collins descreve na trilogia que se passa 64 anos depois e a versão de Cantiga, o que evita meras repetições da competição mortal. Aqui, os Jogos Vorazes aproximam-se muito mais das lutas gladiatoriais da Roma Antiga, com os tributos sendo simplesmente jogados em um estádio simples, com algumas armas, de forma que, ao final, apenas um esteja vivo. Não há nenhuma tecnologia especial usada e a organização dos jogos sequer interfere ou influencia em seu desenrolar. A mentoria, claro, já é o primeiro sinal de mudança, mas ele é ainda débil e distante do carnaval midiático de décadas depois, pelo que Collins trata de “salpicar” elementos conhecidos aqui e ali, alguns originados do próprio Snow e sua vontade de se mostrar alguém fora de série (que ele de fato é), como a aposta em tributos, de maneira que seja perfeitamente possível fazer a ponte mental entre uma versão e outra.
O pecado de Cantiga é que Collins parece só ter olhos – ou palavras – para Coriolanus Snow. Todos os personagens de apoio, mesmo Lucy ainda que ela obviamente ganhe mais destaque do que o restante, são apenas isso, personagens de apoio quase que completamente unidimensionais e com funções bem específicas. Sejanus é a inocência e a consciência puras, Tigris é completamente devota ao primo, Casca é o viciado vingativo e a Doutora Volumnia Gaul, mestre dos jogos, é a vilania encarnada. Nenhum deles sai desses estereótipos e nenhum deles ganha qualquer tipo de desenvolvimento, não passando de degraus para a escada que o protagonista precisa subir. Lucy, como disse, foge a esses arquetípicos, mas não por muito. Diria que ela, por ser um tributo e, ao mesmo tempo, interesse romântico de Snow, acaba ganhando mais tempo nos capítulos e, por isso, uma impressão de mais desenvolvimento, da existência de mais camadas, mas, a cada vez que penso nela, cada vez eu me convenço que tudo não passa de uma impressão mesmo. Óbvio que é intrigante as “pistas” que Collins parece deixar sobre Katniss Everdeen no que se refere à Lucy e os personagens que gravitam ao redor dela em seu Distrito, mas isso é muito pouco para torná-la algo efetivamente especial ou mesmo comparável a Snow de seu próprio jeito.
Além disso, apesar de o livro não ser pequeno, o terceiro terço me pareceu corrido demais. Pelo menos os dois primeiros tiveram boa cadência, ainda que, talvez, com pouca ação para o gosto de muita gente (não o meu). No terceiro, que leva à esperada convergência narrativa, Collins parece fazer seus personagens (ou eu deveria usar o singular?) correrem 100 metros rasos enquanto fazem malabarismo com garrafas e giram um bambolê na cintura. É coisa demais acontecendo em um espaço de tempo curto demais que parece acelerar a narrativa em um primeiro momento, mas que só tendem a levá-la a um certo desgaste que poderia ter transcorrido de maneira mais orgânica. Não sei se uma eventual rearrumação e equilíbrio temáticos dos três terços do romance resolveria o problema, mas tenho para mim que sim.
Seja como for, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é uma boa leitura e um prelúdio sobre a “origem do mal” que não sucumbe às obviedades dessa premissa. O Coriolanus Snow de 64 anos no futuro ecoa bem no Coriolanus Snow de 18 anos e Suzanne Collins usa sua verve narrativa para ampliar o universo distópico que criou tão bem. Não é, de forma alguma, um livro necessário, mas, dentre os diversos livros desnecessários que há por aí em sua categoria, este é um dos mais interessantes. No entanto, eu realmente espero que a autora resista à tentação de retornar mais uma vez a esse universo, pois, como disse logo no início, acho que ela deveria empregar seu talento na imaginação de outros universos literários, quem sabe até fora dos limites restritivos das prateleiras para Jovens Adultos…
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Ballad of Songbirds and Snakes – EUA, 2020)
Autoria: Suzanne Collins
Editora original: Scholastic Press
Data original de publicação: 19 de maio de 2020
Editora no Brasil: Editora Rocco (Rocco Jovens Leitores)
Data de publicação no Brasil: 13 de abril de 2021
Páginas: 576