Deixando os propósitos temporais de Einstein de lado, o que realmente são passado e presente? E mais importante: o que os mantém conectados para sempre? Walter Benjamin a partir de seu conceito de imagem dialética dirá que é justamente esse tipo de produção visual capaz de unir estes dois conceitos temporais; nela, há uma referência direta a ambos passado e presente sem existir saudosismo e, muito menos, um olhar passivo perante o presente. Muito mais do que na esfera temática, fugindo de flashbacks e flashforwards, a imagem dialética está focada nos modos de fazer, nas questões formais, não tanto narrativas. O diálogo dialético benjaminiano se propõe a um olhar crítico de ambos, passado e presente a partir de seus respectivos modos de fazer e convenções de linguagem.
Dentro do cinema – e antes, da literatura – os debates acerca das temporalidades sempre estiveram presentes na teoria, mas, mais importante, também na prática. Analepses e prolepses (sinônimos teóricos de flashbacks e flashforwards) são elementos da linguagem cinematográfica que se manifestam desde os primórdios do cinema, mas que, com o tempo, são modificados e, até mesmo, subvertidos. No cinema moderno, por exemplo, os limites entre passado e presente fílmicos apresentam limites pouco explícitos, criando, no espectador, confusão entre as linhas do tempo criadas. Diretores como Alain Resnais e Chris Marker, por exemplo, são conhecidos por criarem apagamentos entre tais fronteiras temporais. Carlos Saura, no entanto, também não deve ser deixado para trás: em Cría Cuervos, sua obra-prima, existe uma clara dissolução de passado e presente, criando um universo no qual tudo funciona como um só tempo capaz de moldar todas as facetas da personalidade da protagonista do filme.
Se tratando de passado, é quase impossível deixar de lado o tema da memória, por exemplo. Se Giorgio Agamben diz que a captura de um momento, de um zeitgeist, apenas é feita de maneira orgânica ao se vivenciar tal instante, é tarefa de memória reter as sensações e as impressões exprimidas em determinado tempo. Saura, em A Caça, apresenta um filme que, de modo direto ou indireto, flerta com a temática de memória e de como experiências passadas são definidoras para o presente. O filme conta a história de três velhos amigos dos tempos de guerra civil espanhola que se reúnem, junto de um jovem, para caçar coelhos em um lugar remoto. Lá, além da caçada, acabam fazendo uma revisita ao passado através de suas relações interpessoais e, mais adiante, um segredo.
Saura explora a ideia de passado de modo não usual, ligando-a diretamente ao monólogo interior dos personagens – momentos nos quais adentramos em suas psiques por meio de close ups e voice over específicos. Nestes trechos, principalmente, acirrando as relações entre os três protagonistas, surgem os primeiros focos dramáticos da película que, inevitavelmente, estão ligados ao passado desses. O drama, no entanto, acompanha a câmera de Carlos Saura no decorrer do filme: em formato de crescendo musical, na medida em que o suspense toma conta de A Caça, percebe-se um comportamento incisivo da mise en scène, que retira os personagens de sua zona de conforto.
A principal característica da direção do filme, é justamente como o diretor intervém na linguagem para remeter os dramas passados. Durante cenas que não possuem conexão com suas relações passadas, vê-se uma atuação austera da câmera, buscando uma intervenção contida, de certo modo orgânica, com composições não exatamente equilibradas, porém extremamente confortáveis. E, para o delírio de Béla Balázs, o close up é, em A Caça, elemento chave da linguagem; claustrofóbicos, explicitam exemplarmente a agonia contida em cada um dos decadentes protagonistas. Nos momentos instáveis, o passado aflora e, assim como o insustentável calor do sol, arde em cada um dos personagens o fogo interno de memórias nem tão prazerosas.
Em tratando-se dos monólogos interiores, vale ressaltar que, por mais que os enquadramentos em close de Saura saltem aos olhos como elemento de potência dramática, não se pode ignorar que em tais momentos, a perfeição imagética não reina. Ao cair na tentação de explicitar os sentimentos mais recalcados de seus personagens, o diretor acaba por falhar justamente pelo excesso; cansativos, os voiceover não dão conta de seguir com a potência das imagens, tornando-se tediosos. Entenda-se: o propósito não é acusar o som como o culpado para tal desequilíbrio na construção de um bom monólogo interior cinematográfico. Por mais que Eisenstein possa apontar que, para desenvolver um competente monólogo interior, é necessário uma polifonia e polissemia para simular o processo cognitivo humano, é sabido que tal afirmação não é verdadeira: são inúmeros os casos que não seguem à risca a cartilha eisensteiniana e constituem cenas ímpares na história do cinema. No próprio cinema de Carlos Saura, como em Cría Cuervos, os estabelecimentos de monólogos interiores se dão muito mais pelo silêncio e por transições temporais suaves do que por uma orquestrada confusão audiovisual.
Se tais monólogos não são exatamente eficientes em captar a essência de seus personagens, há de se tratar da famigerada cena da caça. Definitivamente, o brilhantismo que falta nos close ups individuais se sobressai no trecho em questão. Ao som de uma marcha militar, os três protagonistas, na companhia de um cão, iniciam o tiroteio em direção aos coelhos – animais estes que realmente foram mortos durante as filmagens, graças à contribuição de Dom Luís Buñuel. É nesta cena que Saura atinge brutalidade tamanha que, após o filme, conclui-se que, na verdade, o passado é a força motriz de tal comportamento visceral dos protagonistas e, mais importante, da câmera. Trata-se de um expurgo. A mise en scène deixa de lado a austeridade e passa a atuar tal qual uma entidade movida pela potência da raiva liberada pelos caçadores. Este comportamento, aliado aos monólogos interiores, demonstra que existe algo que liga estes três homens que vai muito além dos problemas financeiros citados ao longo da obra.
E é apenas no terço final do filme que se descobre o que os mantém conectados pelo medo e pela raiva: um cadáver escondido em uma caverna desde os tempos da guerra civil espanhola. Até esse momento, A Caça se apresenta como um drama situacional, que tenciona os protagonistas por meio de diálogos fortuitos, cotidianos por assim dizer. Existe certo encanto letárgico com essa lógica dramática; três homens veteranos de guerra com vidas decadentes e desiludidos com a sociedade da Espanha. Os protagonistas parecem não buscar nada, sem vontade de potência, para usar um termo nietzschiano; nada acontece de relevante em suas vidas, nada os contenta e a caça seria um momento de busca por algo a mais. A mise en scène de Carlos Saura é exemplar até então, explorando esse cansaço espiritual por meio da economia da linguagem cinematográfica.
Quase como uma tulpa, o corpo morto encontrado muda os personagens, já que se deparam com um literal aparecimento físico de seus tremores passados. Antes paralisados, agora existe um algo a mais em suas vidas. O problema é, justamente, que a mise en scène de Saura não faz questão de colocar esses sentimentos em sua linguagem; a austeridade continua, deixando passar uma oportunidade de despejar pujância, raiva e medo em sua câmera. Existem, obviamente, os méritos de Carlos Saura em criar ambientação a partir do nada, como um encanto à Blow-up, mas seu final não apresenta uma ruptura consistente com aquilo que muda a trajetória de seus personagens. Direção e narrativa parecem interromper um belo diálogo travado desde seu início. O presente e um passado recente letárgico estão na estética – o diretor faz questão de evidenciar os monólogos interiores – mas os medos e a raiva pouco aparecem, empobrecendo um terreno fértil para maiores ousadias na mise en scène.
A Caça (La Caza) – Espanha, 1966
Direção: Carlos Saura
Roteiro: Carlos Saura, Angelino Fons
Elenco: Ismael Merlo, Alfredo Mayo, José María Prada, Emílio Gutiérrez Caba, Fernando Sánchez Polak, Violeta García, María Sánchez Aroca
Duração: 91 min.