“Olhe para ela. E se ela for a garota? A que quebrará o feitiço?”
Por que ansiamos em ganhar, de presente, versões cinematográficas dos nossos heróis de quadrinhos, nossos videogames queridos ou nossas obras literárias mais adoradas? Muito poderia se dissertar sobre, mas vamos partir do princípio que isto se dá, resumidamente, porque existe uma mudança crucial de uma mídia para outra. Quando falamos em remake dentro do cinema, as coisas começam a ficar mais confusas. Para muita gente, o Ben-Hur, de 1959, é um dos melhores épicos de todos os tempos e, olha, ele é um remake. A forma de contar histórias em 1959, porém, era consideravelmente diferente da forma de contar histórias em 1925, seja pela mudança na narrativa, seja pela evolução da tecnologia. Acima de tudo, uma questão estética, primordial para um novo público – que não suporta ver um filme preto e branco, mas suporta ver Transformers -, e, ainda mais relevante, a pontuação de visões autorais diferenciadas. Animações, no entanto, são bastante diferentes de filmes “regulares”. A Bela e a Fera, de 1991, poderia muito bem ser lançada nos dias de hoje que, tecnologicamente falando, continuaria excepcional. O público não possui preconceito com a animação mais tradicional. Ninguém vai falar que não vai ver Pinóquio porque é antigo. Já O Mágico de Oz é uma outra história, entristecida obviamente.
Seria um desrespeito com a própria arte da animação as pessoas ansiarem por assistir O Rei Leão em live-action, quando elas possuem à disposição um filme que capta tudo que tem que captar, sem soar nenhum pouco datado? A nostalgia é poderosa. Ao invés de buscarmos novas experiências cinematográficas, que nos conquistará como pessoas adultas, preferimos o novo ao antigo, malandramente detentor de uma “nova” roupagem. A animação, como gênero, vai servir, diante disso, como holofote inicial dos filmes e não o verdadeiro formato da consagração. A direção de Jon Fraveau, em Mogli: O Menino Lobo, pode ser distinta disso? O trabalho de computação gráfica é, definitivamente, uma conquista sem precedentes – única justificativa completamente válida. A cópia pela cópia não deve ser enxergada como um demérito por completo, porém, também não deve ser olhada com bons olhos, mas devidamente desconfiados. Esta incursão da Disney a mais um de seus clássicos inquestionáveis vai agradar a massa dos “fãs” do filme original. Já cheio de reclamações e devaneios rabugentos? Buscarei me ater à obra pela obra, indignado, comparando ambos, mas sem desmerecer por completo a refilmagem “só” porque eu acho que está tudo errado com a indústria e com nós. A realidade é que sempre esteve, mas fica mais simples olharmos filme por filme.
A revisitação a uma história, da mesma forma como ela foi contada “originalmente”, não é algo muito atrativo para aqueles que querem criatividade. A necessidade do espectador é por uma mente que consiga se sustentar em visualizar, com encanto, algo que já foi passado para ele anteriormente. As animações, aliás, carregam um quê cinematográfico apenas delas, algo que, no live-action, se perde. Na tentativa de tornar tudo realista quando, na verdade, a obra e seus personagens ficam toscos se imaginados fora do gênero animado. Diferentemente, mas parecidamente, adotando o pensamento de que se é possível criar uma criatura “real” como a do original de 91 – o que, definitivamente, é -, o design da Fera (Dan Stevens) é uma daquelas coisas que ficaria melhor se não buscasse emular o que o personagem é na animação, mas fazer algo autoral, criando uma criatura palpável. Enquanto as mobílias do castelo, antigos serventes deste, são extremamente críveis, mágicos na medida certa, a criação da Fera buscou trazer uma mistura que encontra erros ao não saber modelar o lado triste, menos ameaçador do personagem, com o seu lado mais assustador, vilanesco. O segundo nunca aparece de verdade, enquanto o primeiro é extraído completamente, devido o fato de nunca experienciarmos uma relação mais temerosa em relação ao monstro, apenas o sorrisinho abobalhado.
O funcionamento da computação gráfica era crucial para um apego ao personagem. As cenas de cunho dramático, sem isso, caem para um melodrama expositivo, vide o aparente descompromisso da atuação de Dan Stevens, demasiadamente prejudicado. Bela (Emma Watson), paralelamente, não parece ter um interesse real no monstro, embora o conto de fadas clássico continue ali, funcionando, para a maioria de nós, por uma outra questão: essa é uma história que conhecemos. O público alvo deste filme tem alguma familiaridade com a história da garota que se oferece como prisioneira de uma Fera amaldiçoada, no lugar de seu pai. As desfuncionalidades existem na condução dramática, no tom, no ritmo e, principalmente, na atuação, escondida debaixo de computador. A mesma coisa não pode ser dita dos serviçais do castelo, que possuem vozes muito bem encaixadas. Lumière (Ewan McGregor) e Horloge (Ian McKellen) transparecem química e são excelentes alívios cômicos. A maldição que lhes foi atribuída tem ainda mais peso do que na obra original, criando cenas de mais apelo trágico, como no caso da Madame Samovar (Emma Thompson) e de Zip (Nathan Mack). A adição de casais românticos, por fim, é outra pontuação que funciona, tanto como sacadas cômicas quanto como maneiras extras de nos apegarmos a personagens, alguns novos, como Cadenza (Stanley Tucci).
A Bela e a Fera também possui consideráveis adições de narrativa em relação à base. Os protagonistas recebem doses extras de background, garantindo, no caso da francesa, vigor na sua relação com Maurice (Kevin Kline). Emma Watson mostra-se competente, como na sequência da canção Belle, da graciosidade própria às zombarias dos outros. O encantamento da jovem em relação ao mundo de magia que lhe é apresentado, todavia, está em falta. Enquanto a Bela da animação estava fascinada e engajada na apresentação surrealista de Be Our Guest, esta Bela é quase apática. Uma das mais agradáveis mudanças, por outro lado, é a introdução de personagens negros à trama, o que é bem-vindo, mesmo que seja temporalmente impreciso – mas é um conto de fadas, ora. Uma decisão consciente do diretor Bill Condon, assumindo atitudes afirmativas no filme, como no caso de “escancarar” a sexualidade de Le Fou (Josh Gad). O diretor usa da sugestão para fornecer uma conclusão sábia, justa para o que o personagem demonstrou ser no filme, distante de um mero queerbaiting. Já Gaston (Luke Evans) rouba todas as cenas em que aparece. Um antagonista que recebe um acertado tratamento no que se refere a sua instabilidade maleficente, enquanto Le Fou é uma racionalidade relegada a não ser ouvida, assim como os seus sentimentos.
As performances musicais e as cenas de ação do longa-metragem, em outra instância, não são bem trabalhadas. Em Beauty and the Beast, por exemplo, planos mais longos, que acompanhassem a música, eram necessários. A dança, sem isso, desapega-se do grande significado dentro da narrativa. Condon teria tido mais êxito se deixasse a câmera fluir, não permitindo que o trabalho de edição ficasse tão presente, com direito a vários cortes redundantes. O momento soa vazio. Ambos, início e final, possuem novidades em relação ao trabalho de época, se comparado com a obra original, mas não possuem coreografias épicas. A última, aliás, abusa de um apego manipulativo à música-título do filme, sem entregar, completamente, a conclusão esperada. Já Evermore, nova canção escrita para a obra, é muito boa, mesmo apreciada mais como uma possibilidade para um espetáculo teatral do que funcional cinematograficamente. A trilha sonora, apesar de tudo isso, continua sendo um ponto positivo. O maior centro das atenções desta nova produção de A Bela e a Fera, no final das contas, em contrapartida, é o design de produção e o figurino. Sarah Greenwood aposta em uma obra luxuosa, adotando um senso de majestade e mistério nas composições interiores do castelo. Os figurinos, no entanto, são surpreendentes, em uma mistura do real com o lúdico, fiel, mas não impreciso no tom.
O contexto desse remake é retomado enfim. Bela e a Fera foi a primeira animação indicada a Melhor Filme no Oscar, um passo gigantesco para um gênero bastante desmerecido. O amor enorme de fãs por um filme que é, na ideia, exatamente igual ao anterior, significa que animação não é tão considerada como cinema quanto live-actions, quando deveria, na verdade, estar no mesmo nível. Uma cópia “fiel” à animação, que ainda falha em ser uma cópia, mas recebe aplausos e aplausos de pessoas que, glorificando a realização por ser, teoricamente, tudo o que a original já é, desmerece o trabalho de uma equipe de animadores extraordinários. Um “auto-plágio” desonesto, a fim de lucrar facilmente, à base de memória afetiva. Dado o compromisso criado com vocês, nos meus dois primeiros parágrafos, busquei não deixei levar a minha opinião pessoal, a qual não se caracteriza como verdade absoluta de nada, até predisposta a adentrar muitas discussões, como também ter influenciado significativamente no que achei de A Bela e a Fera, de 2017. Mesmo buscando copiar passo a passo uma obra-prima, adicionando meia hora de filme que não existia originalmente, esta é uma fita razoável, que, ironicamente, perde todos os seus encantos maiores se comparados com aqueles do filme original de 91. O sentimento foi reciclado, o filme também, mas a qualidade, curiosamente, nem tanto.
A Bela e a Fera (Beauty and the Beast) — EUA, 2017
Direção: Bill Condon
Roteiro: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Josh Gad, Kevin Kline, Hattie Morahan, Haydn Gwynne, Ewan McGregor, Ian McKellen, Emma Thompson, Nathan Mack, Audra McDonald, Stanley Tucci
Duração: 129 min.