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Crítica | A Bela da Tarde

por Ritter Fan
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A racionalização completa de A Bela da Tarde, que muitos críticos, analistas e psicólogos já tentaram, é infrutífera. Não como matéria para debate, pois aí sim muita coisa interessante pode sair, mas sim como tentativa de rotulagem, como carimbo, como algo definitivo. Grande parte das obras-primas de Luis Buñuel ultrapassam as fronteiras de definições e da necessidade que muitos têm de encontrar significado em tudo.

Afinal de contas, estamos falando do diretor e roteirista que, sentado em um quarto com seu então amigo Salvador Dalí, fez um “roteiro” para Um Cão Andaluz cuja única regra era que “qualquer cena que tivesse algum significado, seria descartada”. E assim eles fizeram. Claro que, ao longo do tempo e de sua magnífica carreira, muitos dos filmes de Buñuel deixaram de ter qualquer característica surrealista pura, ainda que muitos deles tenham pistas escondidas aqui e ali sobre a preferência estilística de seu diretor.

A Bela da Tarde, um de seus mais importantes trabalhos e provavelmente seu filme mais famoso, desafia as convenções e as explicações objetivas. Sim, é muito fácil dizer que Séverine (Catherine Deneuve) “transforma-se” na Bela da Tarde, pois ela tem uma vida amorosa insatisfatória. É também simples usar um curto flashback que Buñuel espertamente insere na obra para concluir que “ela é assim, pois foi molestada quando criança”. Esse dirigismo conclusivo chega a ser engraçado, como se crianças molestadas tivessem mais tendência de se transformarem em prostitutas quando adultas ou que uma vida apática sexualmente levasse alguém a se prostituir. E mesmo que uma coisa leve à outra, Buñuel trata do assunto em tantas camadas que qualquer conclusão finalista pode até estar filosoficamente correta (se é que isso existe), mas provavelmente não baterá com aquilo que o diretor faz tão bem no filme: a mescla entre realidade e sonho, entre o real e o surreal.

Vejam a primeira cena por exemplo, em que nos deparamos com Séverine e seu marido Pierre (Jean Sorel) passeando de carruagem em um bucólico parque no outono. Ouvimos o titilar dos guizos presos aos animais e os chicotes dos cocheiros. Pierre, claramente apaixonado por Séverine, reclama que sua esposa é “fria”. Ato contínuo, ele manda a carruagem parar e os dois cocheiros passam a fazer como “ordenados”, levando a indefesa Séverine para o meio da floresta, amarrando-a a uma árvore e despindo-a para iniciar um estupro, com direito a chicotadas. O rosto de Séverine passa rapidamente da surpresa e indignação para o prazer mais puro.

Corta a cena e voltamos à realidade, com Séverine acordando de seu pesadelo. Mas é pesadelo mesmo ou seria um sonho ou, talvez, seu desejo mais profundo? São sequências como essa, perfeitamente inseridas na narrativa sem que tenhamos pista se são acontecimentos reais ou não, que balançam a percepção do espectador e que impedem conclusões precipitadas.

Aliás, como concluir alguma coisa com tanta certeza se, fechando o filme, temos outra sequência dessas, de sonho/realidade, em que vemos Pierre, saindo de sua cadeira de rodas e servindo bebida à Séverine, quando a câmera então faz uma transição entre a fachada de onde eles moram e o tal parque no outono com sons de guizos presos a cavalos?

Sim, Séverine famosamente procura um prostíbulo e mais famosamente ainda transforma-se na Bela da Tarde ao descobrir que sente prazer em fazer sexo com desconhecidos. Ou seria ela uma masoquista que gosta de sexo violento, seja com desconhecidos ou não? Qual é, afinal, a verdadeira vida de Séverine, a de Bela da Tarde no prostíbulo de Madame Anaïs (Geneviève Page) ou a de esposa de Pierre?

Repare que não é à toa que Madame Anaïs é linda e sofisticada como Séverine, assim como não é à toa Pierre ser bonito como é, quase como um boneco Ken casado com a Barbie. Os dois opostos são parecidos. Ambos extremamente agradáveis, educados, atraentes. Como justificar a fuga de Séverine para oferecer seu corpo sob as asas de Madame Anaïs se ela tem tudo o que quer com Pierre? E o contrário?

Buñuel joga as perguntas e não dá respostas. Mesmo quando se utiliza de flashbacks para a infância de Séverine, um mostrando que ela foi molestada e outra que indica que ela tem consciência de sua “impureza”, pois se recusa a tomar uma hóstia durante a Primeira Comunhão, Buñuel não deixa evidente que aqueles flashbacks são, efetiva e inegavelmente, flashbacks. Afinal de contas, realidade e ficção (ou, talvez, melhor dizendo, surrealidade) misturam-se em A Bela da Tarde. Mesmo considerando que, eventualmente, o romance  de Joseph Kessel, de 1928, traga essas respostas (não o li), o filme deixa tudo para o espectador contemplar. Buñuel não julga, nem justifica. Ele apenas mostra. Mostra que talvez a realidade não seja tão real assim ou, melhor, que a própria realidade seja a junção entre o que é real e o que não é real.

Catherine Deneuve, que havia alcançado reconhecimento dois anos antes de seu papel como  Séverine, curiosamente em Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski, que trata, de certa forma, do mesmo assunto, está no auge de sua carreira como atriz. Não só ela estava assustadoramente bela aos seus 23 anos, como, também, consegue fazer seus papeis mergulhando em cada um deles. Temos Séverine, uma mulher rica e bem casada, com aquele olhar superior, frio e distante, extremamente bem vestida (Yves Saint Laurent criou todo seu guarda-roupa), com cabelos arrumadíssimos e, do outro lado, temos a submissa, sexualmente liberada Bela da Tarde, de cabelos soltos, apenas de roupa de baixo (e eventualmente um roupão), que sente prazer em servir homens que jamais fariam parte de seu círculo social. Deneuve convence nesses dois papeis e triunfa em todos os sentidos.

E olha que Buñuel foi extremamente reticente em aceitá-la como sua protagonista. Deneuve foi basicamente empurrada goela abaixo pelos difíceis produtores da fita, Robert e Raymond Hakim, e também por François Truffaut. Tamanha foi a hesitação de Buñuel que isso acabou criando atritos entre ele e a atriz, ao ponto de ela ser vocal sobre as condições de trabalho (convenhamos que até lama na cara ela levou, o que definitivamente não deve ter sido agradável). Mas o resultado está aí para todos verem. Uma combinação literalmente mágica de uma atriz que encarna seu papel com perfeição e um diretor que consegue fundir essa atuação a uma narrativa inesquecível.

Se racionalizar um filme é seu negócio, A Bela da Tarde será um desafio magnífico. Mas a obra de Buñuel – que arrisco dizer é sua obra máxima – vai além da racionalização, além das convenções, além dos rótulos. É uma experiência como poucas que deve ser muito mais sentida e contemplada do que racionalizada.

  • Crítica originalmente publicada em 30 de dezembro de 2013. Revisada para republicação em 22/08/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

A Bela da Tarde (Belle de Jour, França/Itália – 1967)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière (baseado em romance de Joseph Kessel)
Elenco: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti, Françoise Fabian, Macha Méril, Muni, Maria Latour
Duração: 101 min.

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