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Crítica | A Balada de Halo Jones

Quebrando o molde.

por Ritter Fan
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A Balada de Halo Jones começou discretamente, em 1984, na famosa publicação britânica 2000 AD com Alan Moore e Ian Gibson reunindo-se para publicar a história de uma heroína em um futuro distante em que nada é como normalmente esperamos de uma obra em quadrinhos. Para começo de conversa, Halo Jones é uma mulher comum que vive uma vida ordinária. Nada de heroísmo, nada de abordagem hipersexualizada, nada que realmente a destaque do restante a não ser seu nome no título. Além disso, a ação é um termo muito relativo na criação de Moore e Gibson ou, pelo menos, algo que não está em primeiro plano, mas sim em segundo, talvez terceiro, com a dupla criativa preferindo explorar um cotidiano mundano que podemos até mesmo classificar de desinteressante.

Mas são justamente essas escolhas criativas que destacam a série publicada originalmente em preto e branco (hoje, há uma versão colorida) e na forma de três “livros”, os dois primeiros com 10 e o terceiro com 15 capítulos de cinco ou seis páginas cada, quando, por desentendimentos de Moore com a IPC Magazines (então editora da 2000 AD), ela acabou. A proposta inicial era de continuar por mais seis “livros”, narrando a vida da protagonista de seus 18 anos até a terceira idade, mas, mesmo considerando o fim prematuro, o leitor que não conhece a HQ e quiser embarcar nela descobrirá que seu encerramento é devidamente fechado, ainda que não definitivo.

No primeiro arco (ou livro), a história não poderia ser mais banal: Halo Jones sai para comprar comida, acompanhada de uma amiga e de um cachorro cibernético de uma outra amiga que decidiu ficar para trás. Só isso. Mais nada. Ou pelo menos é só isso na superfície, pois o que Moore faz é usar essa premissa para nos apresentar a um universo amplamente desenvolvido, em um futuro distante, mais precisamente no século 50. Jones vive no Aro, uma gigantesca estrutura artificial na Terra que abriga, em linhas gerais, aqueles que não têm futuro, não têm emprego, não têm perspectivas, quase como uma forma que os mais abastados encontraram de não precisar “olhar” para os indesejáveis. Sair para fazer comprar, aqui, não é algo exatamente agradável, mas sim algo que se faz por necessidade, arriscando a vida diante das ameaças que um lugar desses acaba naturalmente oferecendo. E isso é amplificado pelo fato de a protagonista e sua amiga serem mulheres, claro, sem alvos de olhares e insinuações independente do perigo real e imediato. Em outras palavras, Moore extrapola a realidade tanto da época em que escreveu a série, quanto dos dias de hoje.

Nesse primeiro arco de 10 capítulos, a narrativa descontextualizada dessa visão de futuro carrega consigo o ônus de ser, talvez, excessivamente hermética, algo que não é facilitado pelo de Moore escrever os diálogos em um dialeto que ele criou, com diversas palavras completamente inventadas que ele em momento algum explica (lembra uma versão simplificada do que Anthony Burgess fez em Laranja Mecânica). A “inação” também causa estranhamento, ainda que o texto faça esforço para transformar a “jornada de compras” em algo bem mais complexo do que simplesmente andar até a esquina para ir a um supermercado. O que quero dizer com isso é que o leitor precisa respirar fundo e comprar esse mergulho desde as primeiras páginas, lendo com calma e tranquilidade, sem esperar o que é esperado e, acima de tudo, apreciando a belíssima e detalhada arte de Gibson.

Falando no saudoso artista que nos deixou no final de 2023, não sei se seria exagero afirmar diante da variedade de seus outros trabalhos, mas o que ele faz em A Balada de Halo Jones parece-me ser o ponto alto de sua prolífica carreira. Não deve ser fácil converter os textos de Alan Moore em arte sequencial e, no primeiro arco da série, a quantidade de informação derramada diante dos olhos do leitor é prodigiosa, com Gibson triunfando em criar um Aro que é ao mesmo tempo familiar e estranho, bonito e assustador. Cada quadro – e vale enfatizar: cada quadro – é repleto de detalhes que, por vezes, chegam a literalmente abafar a presença de Halo Jones e seus amigos em uma esccolha que, tenho para mim, não só é proposital, como combina exatamente com a premissa da narrativa que quer que sua protagonista seja apenas “mais uma” pessoa no meio de tantas outras.

O segundo arco, publicado no ano seguinte, veio com modificações exigidas pela editora que o próprio Alan Moore reconheceu como importantes para amplificar as possibilidade de sua história. Se a primeira história contava com um hermetismo natural diante de uma premissa diferente que exige que o leitor se aclimate, a segunda é mais, digamos, tradicional, com a inserção de Halo Jones e de seu cão cibernético Toby no cruzeiro espacial de luxo Clara Pandy, como uma funcionária por uma viagem de um ano depois dos eventos traumatizantes do final do primeiro arco. Esse segundo arco ganhou um prólogo que finalmente empresta o tipo de contexto que faltava ao primeiro, com um professor, em um futuro ainda mais distante, dando uma aula sobre seu objeto de pesquisa obsessiva, ninguém menos do que a própria Halo Jones. Com isso, entendemos um pouco da importância – ou da falta de importância – da personagem e, mais ainda, dos elementos formadores do universo da heroína, como, por exemplo, o que exatamente é o Aro em que ela originalmente (a explicação que eu dei mais acima para o lugar decorre muito mais desse prólogo do que do próprio primeiro arco). Pela janela vai o dialeto que Moore criara que só aparece aqui e ali e, claro, há mais ação, ainda que não muita e jamais exagerada ou fora de esquadro.

Entre um trágico personagem trans que, de tanto passar por operações de mudança de sexo, tornou-se uma não-entidade cuja presença ninguém percebe ou, quando percebe, logo se esquece, a conexão de Jones com o cetaceano (um golfinho) Kititirik Tikrikitit que faz as vezes de navegador espacial como acontece no universo de Duna, de Frank Herbert, só que sem as drogas, e um estranho Rei Rato que é a conexão de cinco ratos que entrelaçam as caudas, Moore desenvolve elementos que ficam no segundo plano da narrativa e que lidam com uma guerra intergaláctica que ele indica muito claramente ter sido iniciada pela Terra contra a Nebulosa Tarãntula em um daqueles comentários ferinos sobre imperialismo e opressão. Fica evidente que Moore, aqui, começa um plano para envolver Jones nesse conflito, plano esse que chega à fruição no terceiro arco que conta com um salto temporal para uma Halo Jones deprimida, com 30 anos, em um planeta perdido no meio do nada com coisa nenhuma que, sem alternativa, alista-se nas Forças Armadas, aqui composta quase que exclusivamente de mulheres (ou pelo menos só vemos pelotões de mulheres, por escolha criativa, obviamente) e passa a lutar em conflitos “menores” até chegar ao momento crucial em que ela precisa encarar de frente a guerra no planeta Moab, que tem um campo gravitacional tão forte que o tempo é distorcido.

Como é de se imaginar, a ação toma conta do terceiro arco, com Jones literalmente no meio de uma guerra gigantesca. Mesmo assim, pouco vemos dos inimigos e apenas deduzimos sobre o uso da violência pelo general Luis Cannibal, da Terra, que, aos poucos, se aproxima da protagonista. E, claro, considerando a distorção temporal, a ação é, essencialmente, inação, em uma escolha narrativa que entrega o que os leitores querem, mas bem da maneira Moore de ser. E é nesse arco que Ian Gibson tem ainda mais espaço criativo para soltar-se completamente em uma expansão visual desse universo que não só é sensacional, como conversa perfeitamente com tudo o que veio antes.

A saga feminista de Halo Jones poderia ter continuado como planejada originalmente, mas Moore e Gibson entregam um final mais do que satisfatório para a heroína que, justamente nas últimas páginas, pode ser realmente caracterizada como tal da maneira mais convencional e não apenas por existir e por ser a protagonista. A Balada de Halo Jones pode até demorar a realmente atrair o leitor, mas essa demora faz parte do jogo e, diria, é até uma maneira de determinar quem deve ou não ler as 200 páginas sobre uma mulher comum em um futuro estranho, mas ao mesmo tempo perfeita e infelizmente reconhecível nos dias de hoje. E, claro, se Moore um dia voltar à personagem – o que acho difícil – podem ter certeza de que farei de tudo para por as mãos em um exemplar da publicação!

A Balada de Halo Jones (The Ballad of Halo Jones – Reino Unido, 1984 a 1986)
Contendo: A Balada de Halo Jones Livros 1 a 3
Roteiro: Alan Moore
Arte: Ian Gibson
Letras: Steve Potter (Livros 1 e 2), Richard Starkings (Livro 3)
Editora original: IPC Magazines, Rebellion Developments (2000 AD)
Data original de publicação: julho a setembro de 1984 (Livro 1); fevereiro a abril de 1985 (Livro 2); janeiro a abril de 1986 (Livro 3)
Editora no Brasil (edição lida): Pandora Books
Tradução: Cyntia Palmano
Data de publicação no Brasil (edição lida): janeiro de 2003
Páginas: 200

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