O frisson mundial causado pelo lançamento cinematográfico de 9 1/2 Semanas de Amor, seu subsequente fracasso retumbante nos EUA pela mesma razão pela qual fez sucesso na Europa e em outras partes do mundo em sua versão “sem censura” inegavelmente nublam as qualidades do terceiro longa-metragem de Adrian Lyne, depois de seu gigantesco sucesso financeiro com Flashdance. Décadas depois, creio que o filme ainda carregue aquela rotulação de “filme erótico” que o mantém distante de uma apreciação menos preconceituosa por parte do público em geral, com a exacerbação do politicamente correto criando problemas quase inafastáveis em sua apreciação pelo consumidor atual, que, muito provavelmente, enxergará misoginia e machismo em sua estrutura.
Mesmo compreendendo as duas visões, ou seja, a que desdenha do longa por ser uma obra etiquetada como erótica e, portanto, em tese vazia, e a que a vê como algo que diminui as mulheres, tenho para mim que 9 1/2 Semanas de Amor não é exatamente nem uma coisa, nem outra e que a obra consegue carregar consigo significados bem mais interessantes do que sua superfície e as ingratas sinopses deixam entrever. Diria que desconsiderar o filme por qualquer uma dessas duas razões – o que, vale reiterar, eu entendo, apesar de discordar – é perder a oportunidade de deixar-se levar por mais uma obra atmosférica do diretor britânico que, como poucos, consegue construir um fascinante relacionamento de origem puramente carnal, mas que se desenvolve para o lado amoroso e romântico sem deixar o sexo de lado, muito ao contrário, mesmo que ele seja fadado à autodestruição desde seu início, algo que o roteiro e a fotografia jamais escondem.
Sobre o erotismo do filme, bem, ele talvez até pudesse ser considerado “fora da curva” nesse quesito em meados dos anos 80, mas, hoje, em um mundo de Cinquenta Tons de Cinza, ele seria considerado bastante domado. Mas a razão para essa conclusão não é que Adrian Lyne não foi até o ponto a que deveria ter ido, mas sim justamente por ele ter feito uma obra em que a abordagem do erotismo e do sexo não é um artifício para vender o filme para as audiências ou, pelo menos, não é algo que só serve para atrair o público sem entregar algo de mais relevante em troca. O jogo sexual e romântico entre o rico corretor de bolsa John Gray (Mickey Rourke) e a bela galerista Elizabeth McGraw (Kim Basinger) é, inegavelmente, também um jogo de poder, um que parece colocar o homem em posição superior à mulher na medida em que as apostas ficam mais altas, mais sujas e um pouco mais perigosas.
E, de fato, o que está logo na superfície é um homem seguro de si, estoico, que sabe manipular as pessoas em contraste com uma mulher divorciada que parece se deslumbrar por esse mundo novo em que embarca com alguma relutância. Nessa mesma superfície, podemos tirar a primeira lição – a mais óbvia – do longa de Lyne que parece querer indicar que é sempre bom estar disposto a sair da famosa zona de conforto, em arriscar-se nem que seja um pouco, em entregar-se a momentos levados por pura paixão ou loucura ou excitação. Mas essa é só a ponta do proverbial iceberg. O que eu vejo logo abaixo é uma subversão discreta de papeis que fica evidente em seu fim, quando John finalmente está disposto a revelar-se como um ser humano com passado, com sentimentos, com uma vida que ele faz de tudo para deixar escondida atrás de seu apartamento descolado, suas roupas padronizadas, sua sofisticação blasé.
John controla a relação até perder esse controle e, no momento em que isso acontece, ele já não tem mais como reconstruir a conexão dele com Elizabeth. Ele parece achar que, para encantar uma mulher, para ter uma relação saudável, ele precisa criar novidades todas as noites, algo que começa com uma venda nos olhos e vai até o ponto em que ele contrata uma prostituta para potencialmente desafiar os limites a que Lizzie está disposta a ir. John é o anti-rotina, o sujeito que não se garante em absolutamente nada que não seja sua própria rotina de não ter rotina, com o roteiro muito claramente dizendo para nós que, ao revés, relacionamento é rotina e que isso está longe de ser ruim. O título do filme, que, claro, é o tempo do relacionamento dos dois, deixa claro que o que John faz é trocar sentimentos, cumplicidade, amizade e amor contemplativo por invencionices que chegam ao ponto de ele fazê-la vestir-se de homem, arrumar briga na rua e culminar com uma transa fisicamente impossível em uma escada molhada que mais parece uma saída de esgoto.
Enquanto Mickey Rourke atua friamente, mantendo seu personagem distante tanto de Elizabeth quando dos espectadores, Kim Basinger faz exatamente o oposto, construindo uma personagem que – ainda bem! – não é uma garotinha bobinha de um lado e sexualmente expert do outro, mas sim uma mulher belíssima, mas madura ao ponto de saber que não precisa vestir-se como uma femme fatale 24 horas por dia para fazer a cabeça dos homens girarem. Ela não é um ser necessariamente sexual, não é um objeto, por mais que o preconceito sobre esse filme dite às pessoas que ela é. Muito ao contrário, Elizabeth é um construto completo que Basinger e Lyne exploram esplendidamente ao longo da narrativa, com uma cena em particular, a que ela vai visitar Farnsworth (Dwight Weist), o recluso artista cujos quadros serão expostos na galeria, destacando-se das demais, pois é lá que ela percebe a autenticidade daquele homem que reflete na dela própria, desvelando a artificialidade de John.
9 1/2 Semanas de Amor é uma história de amor e sexo sim, claro, mas que coloca os personagens acima dos artifícios chamativos do suposto subgênero cinematográfico em uma não-história, por assim dizer, já que a película apenas observa um recorte não videoclipado, em contraste com Flashdance, de uma relação intensa que, exatamente o oposto da conclusão mais fácil, reduz a macheza do homem e coloca a feminilidade da mulher diversos níveis acima. Se o espectador estiver disposto a espiar para além da fumaça causada pelos rótulos que o filme ganhou na época de seu lançamento e que permanecem conectados a ele até hoje, verá que existe uma ótima e relevante conversa a ser tida sobre paixões, relacionamentos e sexo, com uma dupla protagonista que surpreende.
9 1/2 Semanas de Amor (Nine 1/2 Weeks – EUA, 1986)
Direção: Adrian Lyne
Roteiro: Patricia Louisianna Knop, Zalman King, Sarah Kernochan (baseado em romance de Elizabeth McNeill)
Elenco: Kim Basinger, Mickey Rourke, Margaret Whitton, David Margulies, Christine Baranski, Karen Young, William DeAcutis, Dwight Weist, Roderick Cook, Olek Krupa, Michael Margotta, Victor Truro, Julian Beck, Dan Lauria
Duração: 117 min.