Reunindo aventuras publicadas no Le Journal de Spirou entre 1948 e 1950, o álbum Quatro Aventuras de Spirou e Fantasio é cronologicamente o terceiro da longa série de publicações desta dupla dos quadrinhos franco-belgas. Criado por Rob-Vel (Robert Velter), Spirou apareceu pela primeira vez numa tirinha em 21 de abril de 1938 na Spirou Magazine, da qual o Le Journal fazia parte. Ele atuava como camareiro do Moustique Hotel, por isso usava um uniforme vermelho caraterístico dos funcionários de grandes hotéis da primeira metade do século XX. Em 1944, foi criado o personagem Fantasio, que se tornaria parte inseparável das histórias de Spirou, ganhando maior expressão, assim como as próprias tramas, quando os quadrinhos passaram para as mãos de André Franquin, o terceiro artista a assumir a saga depois de Rob-Vel (1938 – 1943) e Jijé (1943 – 1946), permanecendo à frente do título até 1968, quando foi substituído por Jean Claude Fournier.
Spirou e o Projeto do Robô (Les Plans du Robot) abre o álbum e mostra o protagonista ao lado de Fantasio e do esquilo Spip tentando impedir que planos de um robô multifuncional chegue às mãos de bandidos que pretendem usar a invenção para… dominar o mundo. Projetados pelo professor Samovar, esses planos são destruídos ainda no início da aventura, mas durante todo o tempo os bandidos fazem de tudo para colocar as mãos no projeto, perseguindo os mocinhos por diversos lugares.
A ancoragem do roteiro é, como esperamos, na comédia do tipo slapstick, com uma série de tragédias bobas acontecendo ao longo da aventura. Algumas delas são muito boas e engraçadas outras parecem apenas ocupar espaço morto na história. A arte ágil e de traços finos e arredondados, com excelente aplicação de cores, é certamente um grande atrativo visual, o que acaba mantendo o leitor engajado. O final, infelizmente, é muito abrupto, com uma parte do enredo resolvendo-se em elipse e outra apenas como parte de algo que já tínhamos visto durante a história. A trama é simpática, engraçada, mas não tem grande fulgor em sua composição, terminando apenas como uma história “ok”.
Spirou no Ringue (Spirou Sur le Ring) se sai muitíssimo melhor que O Projeto do Robô, pelo simples fato de apresentar um roteiro que valoriza a oposição entre Spirou e Mão de Aço durante uma disputa de boxe que faz o protagonista treinar com Fantasio e aceitar, sem quê nem por quê, um desafio proposto pelo rival. O início da história não peca pelo tom ingênuo do texto, mas pela forma quase aleatória com que as coisas acontecem. Mesmo assim, a trama vai rapidamente ganhando fôlego e, após a aceitação para a disputa e o início do treinamento, aceitamos muito bem o que se apresenta e passamos a torcer para um dos lados, observando com cuidado a preparação de cada um e se enraivecendo com a postura do Mão de Aço e sua violência para com as crianças da escola.
Já o segundo ato de Spirou no Ringue é diversão pura! Texto e arte são utilizados para nos colocar também no meio da disputa e acompanhar os muitos núcleos de personagens, com distintas origens, chegarem para assistir aos 10 assaltos marcados. Vale aqui o bom ritmo da passagem do tempo (curioso que este foi o motivo que atrapalhou a história anterior mas aqui o autor consegue fazer justamente o oposto, colhendo os bons frutos desse bom uso do tempo), as crianças de diferentes pontos da cidade, o uso correto e sem exageros das trapalhadas e a linha moral trabalhada pelo texto, aqui com um significado aplaudível. Impossível não se engajar, torcer e ansiar pelo fim da disputa.
Spirou Monta a Cavalo (Spirou Fait du Cheval) é uma aventura bem curtinha, de apenas sete páginas, com uma história onde Spirou é visitado, logo de manhã, por um Fantasio vestido a caráter para equitação. De imediato é engraçado o vocabulário que o jovem usa, totalmente diferente dele, mas entendemos que se trata de uma pose para fazer valer o status que a vestimenta apresenta. Todo o divertimento está no fato de que ao chegar ao haras, Spirou aluga um cavalo que, segundo ele mesmo diz, parece um híbrido de camelo com cavalo de pau. O bicho é impossível, distraído para qualquer coisa ao seu redor e claramente só quer se divertir, comer e beber, o que gera situações e consequências cômicas e um tanto trágicas e custosas para Spirou. O final é um pouco incoerente se levarmos em conta que no início, o animal não precisava de todo aquele aparato para ficar em um único lugar, mas, mesmo assim, nada que tire de fato a qualidade e o humor da pequena história.
Spirou na Terra dos Pigmeus (Spirou Chez les Pygmées) finaliza esta antologia e o faz com uma trama no mínimo polêmica e que depois de ser historicamente contextualizada, deve sim ser criticada e discutida a partir de conceitos sociais e antropológicos ao tratar os habitantes da fictícia Ilha de Lilipanga, que fica a 60Km da costa Oeste da África, mais ou menos à altura da foz do Rio Congo. Na saga, Spirou adota, mais ou menos por força, um tigre que fugira de algum lugar. Este primeiro momento garante uma grande diversão, com Spirou tendo que comprar quilos e quilos de carne para o animal, além de ter constantes reclamações da locatária da pensão que a cada frase mudava a espécie do bicho.
O segundo ato é inteiramente ligado à questão política da terra dos pigmeus, a tal Lilipanga. Spirou e Fantasio são nomeados ministro e secretário, respectivamente, do “Imperador” local, um homem branco simpático, espécie paternalista bonzinho de colonizador. A partir daí a leitura segue, apenas no plano dramático, interessante, com os desenhos e o enredo apontando um lugar onde existe uma divisão de cores entre seus habitantes, os “marrons” ou “castanhos” de um lado e os “pretos” de outros. Ou seja, temos duas etnias negras, com diferentes tonalidades de pele, batalhando por um determinado espaço. Até aí, nenhuma diferença do que temos historicamente em diversas regiões do continente africano, não necessariamente nesses termos, mas com a mesma dinâmica de oposição bélica.
O problema aqui é a forma como Franquin aborda a questão. Em primeiro lugar, é importante deixar claro que a história não é nem um pouco parecida com a abordagem de Hergé em Tintim no Congo, por exemplo. Mas a representação dos negros e relação com os personagens bracos são, no mínimo, questionáveis do ponto de vista sociológico. Claro que é perfeitamente possível entender, como já disse antes, esse tipo de abordagem pela época em que a aventura foi originalmente publicada, entre 1949 e 1950, mas isso não retira do enredo o incômodo de haver uma espécie de “gaiola dourada” em termos de colonização e que o lado negro mais escuro da ilha na verdade era povoado por pessoas que nunca haviam tomado banho, portanto, era só lavarem bem com sabonete (o que de fato acontece!) para que a cor preta saísse da pele e eles se tornassem “apenas marrons”, que era a cor da paz, dos habitantes do lado bonzinho da ilha.
Notem o tom do discurso, as escolhas textuais e visuais e vejam que, por mais alfinetadas que o próprio autor dê em um tipo específico de colonização ditatorial, com direito a venda de armas e planos de dominação e exploração local, fica marcado na mente do leitor a abordagem para a população, o trato com os “mocinhos brancos” e a infame piada com os pretos que precisam se lavar para ficarem marrons e acabarem com a guerra das cores. Um final delicado e que pode levantar uma interessante discussão sobre diferentes formas de racismo nos quadrinhos, mesmo que não de forma segregadora e violenta.
Quatre Aventures de Spirou et Fantasio (Bélgica, 1950)
Editora original: Dupuis, 1950
No Brasil: Sesi-SP Editora, fevereiro de 2016
Roteiro: André Franquin
Arte: André Franquin
72 páginas