Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | 365 Dias

Crítica | 365 Dias

Romantiza o abuso como fetiche.

por Felipe Oliveira
1,6K views

Quando olhamos para filmes como os da franquia After (quatro longas e dois derivados), a trilogia em desenvolvimento de Através da Minha Janela, e agora, 365 Dias, há dois pontos em comum que apontam uma tendência entre eles: adaptam o conteúdo oriundo de uma fanfic, e segundo, compartilham uma visão banal sobre o erotismo. Embora as duas primeiras sagas sejam voltadas para o público adolescente, não deixam de trilhar a mesma linha questionável de relações abusivas como fatores que antecedem o suposto retrato do “mais real possível” do erótico com o soft porn, como se pinta em 365 Dias.

Em torno dessas produções, a polêmica é notória, mas não sacode a indústria o suficiente para deixar de contribuir com tal contextualização. Em entrevista ao StylerCaster, o ator britânico Hero Fiennes Tiffin, protagonista masculino dos longas de After, disse algo no mínimo interessante em defesa da franquia, quando questionado sobre o comportamento tóxico de seu personagem: “É uma linha tênue para andar. Estamos fazendo um romance, e deveria ser supostamente divertido. Mas, em última análise, é uma linha tênue difícil de pisar porque você não quer glamourizar e fazer alguém pensar que é saudável, mas ao mesmo tempo, no mundo do cinema, isso é um pouco divertido“. Já Michele Morrone, astro de 365 Dias, contou ao E! Online estar feliz com a discussão sobre o filme gerar consciência nas pessoas, pois, a obra não veio para minimizar a realidade da violência sexual no mundo, mas espera que audiência entenda que é um filme, tudo ficção. Então, o que há mais a dizer quando sabem bem a história que estão contando, considerando que a parcela que se manifesta em oposição não se compara aos fãs apaixonados pela nebulosa narrativa erótica?

Para entender o que possibilitou essa direção controversa, voltemos para 2011, quando o primeiro livro de Cinquenta Tons de Cinza foi publicado. A inspiração para a autora E.L. James a escrever sobre Anastasia e Christian veio do romance entre Bella e Edward, apresentado na famosa saga Crepúsculo; isso quando sua reformulada imaginação da história ainda se via como uma fanfic, até se tornar um fenômeno literário com três livros. Daqui é possível extrair a extensão lógica que segue a estrutura abusiva de 365 Dias, visto que a escritora transformou Bella em Anastasia, Edward em Christian e o universo vampiresco em um cenário luxuoso envolvendo a tórrida relação do casal. Para justificar o comportamento de seu personagem e a presença do BDSM, há um passado conturbado, os tons de cinza, as facetas do Grey sendo reveladas.

Então, ao emplacar o sucesso de vendas, a fanfic inspirou mais fanfics e isso só aumentou com a adaptação cinematográfica em 2015, dando a fácil receita de um envolvimento tóxico de casais embargados em sexo e sadomasoquismo, e o passado traumático do personagem masculino sendo motivação para seu comportamento bruto e abusivo enquanto espera ser ensinado pela mulher como ser um macho-alfa melhor.

Depois de passar por After, Através da Minha Janela, Bella agora conta com mais uma versão por meio de Laura (Anna Maria Sieklucka) nessa história doentia e absurda divulgada como erótica, a qual a audiência quer ignorar todos os sinais que sinalizam o dissabor do filme para conferir a ousadia prometida, afinal, a Netflix se poupou da discrição ao resumir na sinopse que “Laura foi sequestrada por um mafioso. Agora ela tem 365 dias para se apaixonar por ele”, pronto. A infame descrição logo também explica o sentido por trás do título, porque depois de sequestrada, Laura tem um ano para morrer de amor pelo seu sequestrador.

Muito romântico, e o que impulsiona isso é que após ser ferido pela mesma bala que atingiu seu pai durante uma negociação, o mafioso Massimo (Morrone), tem uma alucinação sobre uma mulher e persegue essa lembrança acreditando que foi ela a responsável por salvar sua vida. Cinco anos se passam, e o filme então apresenta seus protagonistas numa dinâmica montagem que mostra como Laura e Massimo atuam no mundo dos negócios, antes de suas vidas se chocarem.

A sequência é toda embebida num tom artificial e cafona para exemplificar a personalidade da dupla. Em suma, Massimo assumiu a empresa de práticas criminosas da família e revela toda sua imponência para comandar os negócios, enquanto Laura é empoderada e não aceita abaixar a cabeça para homens no famoso hotel que gerencia. Não bastando isso, a cena agora trata de também demonstrar como eles encaram o sexo, numa forte apelação pornográfica idealizada por Massimo, e com Laura utilizando um masturbador.

Mas toda essa composição empoderada de Laura, que solta frases como “não sou um objeto“, “não sou sua propriedade“, são só pedaços de uma autojustificativa rasa do roteiro para então se desviar das críticas contra a sua abordagem. É um completo absurdo a mulher ser sequestrada para consumar a lembrança de uma alucinação de cinco anos atrás de um cara a obrigando a se apaixonar, e o que a história baseada no livro de Bianca Lipinska, que também adaptou ao lado de Tomasz Klimala fez, foi  romantizar e normalizar a Síndrome de Estocolmo e mascarar toda representação abusiva física e psicológica num ilusório campo romântico.

Se nas palavras de Bartek Cierlica à Variety, diretor de fotografia, o filme é um diferencial ao abordar os estágios de uma relação que começou com resistência e tentação, partiu para etapa crua de práticas BDSM e depois termina no amor, não dá pra esperar o mínimo de noção, porque é exatamente dessa forma que conceberam o desenrolar dessa premissa, como se a luta de Laura para fugir do sequestro fosse só um elemento fetichista do envolvimento desse “casal”. Dentro disso, Massimo constantemente diz a Laura que não se pode provocar um homem que conseguiu tudo à força; que não é para provocá-lo “pois, quando te possuir, vou fazer o que quiser“. São nessas colocações que o roteiro caga para o consentimento e normaliza casos de sequestro, realidades de cárceres de privado vividas por mulheres, relações tóxicas com vítimas sendo podadas pela maneira que fala, veste, anda nessa narrativa que suaviza todas essas questões num conto erótico de ostentações luxuosas.

A forma que 365 Dias trata essa condição de abuso e absurdos é contando essa história como se fosse uma típica comédia romântica. A trilha sonora que traz uma música pop a cada cinco minutos, é só um dos fatores utilizados para minimizar, tornar inofensivo esse retrato questionável. Trazer Laura como uma mulher de personalidade forte que se apaixona pelo tipo de cara bacaca que sempre criticou, é o elemento básico que acompanha uma rom-com, que batiza com a fórmula do amor verdadeiro o destino de duas figuras opostas. Então, quando Laura tem a liberdade de utilizar seu celular e notebook, sua maior chance de contar às autoridades, familiares de que foi sequestrada, ela informa a sua mãe que recebeu uma nova oportunidade de emprego e por isso sumiu. Para milhares de mulheres vítimas de tráfico sexual (crime que o filme também aborda), abuso doméstico, 365 dni banaliza essas realidades e coloca uma mulher dizendo não apenas que está apaixonada por Massino, mas que o ama.

Sem falar que muitas mulheres não percebem e se reconhecem, não conseguem sair de uma relação abusiva, dito isso, uma vez que 365 Dias não minimiza a retratação dessa violência, logo, veio para alimentar, traçando o ideal de uma personagem feminina forte, porém submissa. Quando Laura usa um masturbador por seu parceiro não querer fazer sexo, não tolerar a falta de atenção dele, ou questiona inicialmente o porquê ter sido sequestrada, nada tem a ver com empoderar, e sim de um pressuposto vago do universo fanficário de idealizar mulheres independentes como suas protagonistas a fim de atingir uma supérflua representação de personagens fortes, tudo como parte de um metódico conto erótico que tem como pilares abuso, romantização e pessoas elitistas. Não sendo pouca a submissão, Sieklucka interpreta uma mulher que não denuncia seu agressor, mas provoca fisicamente como se estivesse vivendo uma fábula de como ser capturada e amar.

De fato, é disso que trata 365 Dias: uma reformulação erótica para o conto de fadas, onde supostamente traz uma mulher forte subvertendo as convenções, quando na verdade nada mudou, é só mais um relato de submissão. Como não lembrar de A Bela e a Fera, da jovem mulher deixando de lado suas ambições para viver trancafiada em um castelo enquanto “ajuda” a fera reclusa a enxergar o seu melhor lado? Em certo momento, é exatamente o que Massimo pede a Laura, “me ajude a ser um homem mais delicado“.

A escolha de Michele Marrone atende justamente a um padrão que segue na sociedade de um homem padrão, alto, corpo sarado e que exala masculinidade; o típico homão da p*r*a, o macho alfa, aquele que dizem que nem guindaste tiraria de cima. Então, está tudo bem ignorar todo absurdo do filme quando sua intenção sabe exatamente como provocar os arquétipos idealizados pela audiência? Como resistir ao pedido de um homem como o de Massino que depois de sequestrar, apertar seu pescoço, pressionar contra a parede, se comunicar sempre de forma intimidadora e repressora, diz que quer ser melhor? 

Não sendo pouco a abordagem descontraída, embalada com músicas dançantes, e diálogos terríveis de tão bregas para disfarçar os aspectos ultrajantes da produção, o polêmico softporn que beira o sexo explícito não passa de uma apelação pornográfica que mais se preocupa em criar cenas extremamente bizarras como modelo de construção erótica. Mas o ponto em discussão não é sobre a promessa de um filme erótico entregar cenas medonhas de softcore, e sim, da forma que a composição busca camuflar por meio de inserções de suspense, comédia e MUITA música, trazendo inúmeros videoclipes a história altamente controversa. É como se dispusesse de uma desconstrução covarde do contraditório usando a frequente mistura de gêneros numa narrativa para então tornar seu retrato um atrativo inofensivo aos olhos do entretenimento. Então, que 365 Dias não seja visto de forma que o isente do seu mote doentio para quem queria conferir a ousadia, mas que a sua fórmula recorrente não siga sendo normalizada.

365 Dias (365 dni – Polônia, 2020)
Direção: Barbara Bialowas, Tomasz Mandes
Roteiro: Bianka Lipinska, Tomasz Klimala
Elenco: Anna Maria Sieklucka, Michele Morrone, Magdalena Lamparska, Otar Saralidze, Natasza Urbanska
Duração: 115 minutos

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais