Ainda que dentro do cinema eu seja abertamente inclinado ao gênero romance e aos subgêneros melodramáticos, creio que seja impossível, a qualquer um, sair ileso depois de assistir a um drama romântico dirigido por Wong Kar-Wai. Assim como Rainer Werner Fassbinder concentra a natureza trágica do ser humano como nenhum outro cineasta de sua geração, Wong Kar-Wai sintetiza, de mesmo modo, a potência mais sublime e destrutiva do amor passional, muitas vezes em um único momento, que dura apenas o segundo, construindo uma obra marcante. O talentoso diretor trabalha com os sentidos a partir da relação imagem-som, tecendo camadas sinestésicas ao longo de seu filme, a propósito, o 2046: Os Segredos do Amor. Utilizando-se de uma técnica que tinha sido canonizada por Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976), o seu longa explora exaustivamente a manutenção do clima e do ambiente fílmico, criando uma atmosférica e inesquecível experiência estilística.
O cinema de amor de Wong Kar-Wai produz o metaficcional 2046, um enredo que abre uma fratura poderosa em Chow (Tony Leung) ao colocá-lo em uma intriga sobre a lembrança devastadora de uma paixão que se perdeu, levando-o a vagar perdidamente em um mundo regido por Eros na busca de preencher a ausência deixada por Su (Maggie Cheung). 2046, a princípio, é o terceiro filme de uma trilogia composta por Dias Selvagens e Amor à Flor da Pele, trilogia esta que trabalha, especialmente, a vida de Su e Chow.
Em resumo, este filme é focado na vida de Chow Mo-wan, que parte de Hong Kong após ter se envolvido intensamente com Su, a mulher que ele deixou para trás no vertiginoso In the Mood for Love, o longa anterior. Em Cingapura, visivelmente melancólico, Chow entrega-se a experimentar as paixões mais intensas que aparecem. No contraponto do drama, desenvolve-se a trama ficcional paralela, que toma contornos a partir do momento em que Chow, solitário, começa a escrever uma história sobre um misterioso trem que parte para o ano de 2046, o lugar em que as pessoas vão buscar por seus amores perdidos, conduzidas pela lembrança e pela saudade. É como se você quisesse voltar para aquele dia incrível e misteriosamente conseguir, através de um trem que faz essa viagem em retorno. Aos poucos, a narrativa mistura o real com o ficcional.
Com foco nos detalhes, a partir de uma câmera míope, o cineasta deposita uma carga dramática intensa na relação entre os seus personagens e lança um olhar poético sobre o detalhe no ambiente cenográfico. Com isso, a câmera invariavelmente percebe as mãos cruzadas, o olhar descontinuado, a sensualidade da língua espanhola, o silêncio, entre outros aspectos que evidenciam um cinema que é propositadamente apaixonado em experimentar as potências mais instintivas do que costuma-se chamar de paixão, pesando a mão e testando os seus personagens em seus extremos sentimentais limítrofes, colocando-os sempre no centro de um encontro ou um desencontro amoroso brutal.
O caráter fragmentário impede a fluidez do ritmo dramático, e por vezes o “cinefuturismo” parece deslocado do curso da trama, gerando um estranhamento na passagem do real para o utópico. Apesar das estranhas cenas que se passam na dimensão ficcional do livro, que é a outra narrativa dentro da narrativa real, o cineasta presenteia o público com uma apaixonante sequência envolvendo um androide e um humano, numa configuração bizarramente lírica, mas densamente melancólica no conjunto. Não apoiando-se apenas em seu roteiro, a trilha sonora é uma parte compositiva fundamental no curso da película, além do trabalho de áudio, visto que são estes os aspectos que fazem a orientação por meio dos sentidos. A cinematografia e a sensibilidade poética que há na parte visual, na imagem propriamente, deve-se ao impecável Christopher Doyle, o diretor de fotografia, que tem tanta liberdade quanto Kar-Wai dentro do estúdio.
2046 é um filme que conduz os seus personagens solitários por meio dos múltiplos sentidos da noção de desejo, que atua como um complexo motor do enredo. Como sujeitos faltantes em seus núcleos mais profundos, eles vagam por um mundo mítico-erótico procurando por algo que nunca se mostra em completude. A gestação desse sentimento de falta leva-os sempre a busca, abrindo caminho para todos os encontros da trama, que resulta, inevitavelmente, na manifestação de uma força sentimental destrutiva para um dos lados, ou para os dois. A lembrança – ou a memória – é um componente fundamental, pois toda a estrutura do filme, em seus aspectos técnicos e temáticos, se baseia nela. O número 2046 do quarto de hotel interliga a trilogia, e será sempre uma numeração que retoma todo um contexto de lembrança amorosa. Na montagem fílmica há também a manifestação do componente memória, que se evidencia através desta estrutura moderna que fragmenta o filme, e faz como se fosse um puzzle. Com a numeração, o cineasta dialoga diretamente com a memória do público e com a memória afetiva de seus próprios personagens, sobretudo com estes, que é onde o diretor aprofunda um estudo temático e experimenta em seus protagonistas um extremo passional que caminha entre o prazer e a ruína.
Assumindo os riscos desde o momento em que decide criar essa dupla trama intertextual, o diretor aproveita e costura uma ponte com as movimentações políticas em torno de Hong Kong em 1967, criando um espaço de escapismo dentro da literatura de ficção. Inquestionavelmente bem amarrado, com um final que une todas as pontas do filme mas também da própria trilogia, 2046: Os Segredos do Amor consolida a desilusão do protagonista ao mexer em uma ferida e deixá-la em cicatrização permanente. Construindo uma armadilha para o seu próprio personagem, Wong Kar-Wai engana Chow Mo-Wan a partir de um efeito de ilusão de ótica e de percepção, fazendo-o acreditar em um reencontro que, na realidade, era mais uma fratura, mais um desencontro e mais uma dor.
2046 – Os Segredos do Amor (2046) – China, Hong Kong, França, Itália, Alemanha, 2004
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai, Gong Li, Faye Wong, Takuya Kimura, Zhang Ziyi, Carina Lau, Chang Chen, Bird Thongchai McIntyre, Dong Jie, Maggie Cheung
Duração: 129 min.