Um debate sobre o caráter unilateral de abordagem de um filme como 20 Dias em Mariupol é desnecessário. Ao menos em sua idealização e direcionamento de propaganda, o filme é honesto, basta ver com atenção o que está posto na tela e ouvir o que o onipresente narrador-interferidor emocional tem a dizer. Neutralidade não existe, muito menos em documentários. Portanto, problematizar a obra pelo aspecto partidário também não gerará muita coisa, uma vez que esta é a tônica de todos os documentários. Cinema não é a realidade, nunca se propôs a ser. Cinema é uma arte que gera uma versão da realidade, um recorte, um olhar parcial. A partir do momento em que a câmera é apontada para um lugar/grupo/pessoa, há uma racionalização espetacular na captura do mundo, uma intenção que pretende comunicar uma ideia. Godard condensou de forma intocável a condição do gênero e sua relação entre “verdade/mentira” ou “realidade/ficção“: “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (…) E quem opta a fundo por um encontra necessariamente o outro no fim do caminho“.
Mstyslav Chernov é um cinegrafista, fotógrafo, fotojornalista e correspondente de guerra ucraniano. 20 Dias em Mariupol é o seu primeiro filme. Em entrevista sobre a obra, no início de 2024, chegou a dizer que optou por uma abordagem “crua e real” dos ataques russos à cidade, porque queria “mostrar o que uma guerra pode fazer a um povo agredido“. É aquilo que qualquer pessoa consciente chamaria de “horror da guerra“. Em qualquer guerra. Em qualquer lugar. E para ambos os lados, onde populações inocentes, que nada têm a ver com o plano de poder de suas lideranças políticas, são condenadas ao fogo, aos estilhaços, ao soterramento, ao fuzilamento, aos gritos, à dor, ao trauma… à morte. Não há novidade nisso, sob nenhum aspecto, e a não ser em casos de espectadores verdadeiramente alienados, que nunca refletiram sobre um front urbano de guerra, a proposta de Mstyslav Chernov não completa a sua intenção de comunicação porque mostra o que já é conhecido — com a exceção da especificidade do povo mariupolense vitimado pela Rússia putinista, claro.
Então entramos no motivo que causa a problemática do longa a partir de seus 15 primeiros minutos. O diretor reúne uma porção de cenas de pleno sofrimento e resultado de massacres de guerra sob uma narração incessante, que não silencia nem mesmo quando tudo ao seu redor implora pelo silêncio. É uma interferência em off que faz o filme ser demagogo e reforça a exploração gratuita do sofrimento alheio, porque a voz reflete, comenta, reafirma o que se vê na tela e se permite ler frases existenciais ou quase tragicamente líricas sobre crianças dilaceradas, mulheres grávidas sangrando com estilhaços na barriga e gente desesperada e correndo dos ataques que a câmera psicopata do diretor persegue pela rua, perguntando o nome e por que estavam correndo. É uma muitas cenas revoltantes da obra, e se assemelha aos programas pinga-sangue da TV brasileira, onde a miséria humana vira espetáculo, um vazio objeto de pena à distância, uma mórbida curiosidade que ainda tem a pachorra de dizer “eu também estaria desesperado nessa situação“, depois de ser xingado por alguém que corria de um ataque e não queria dar entrevista à equipe de filmagem que lhe perseguia. Isso é jornalismo? Isso é documentário?
A narração sussurrante (nada me tira da cabeça que o diretor quis, sem saber, imitar o estilo documentarista de Werner Herzog) nem é o pior dos aspectos formais do longa, apesar de tornar-se uma escolha manipuladora de emoções. Formalmente, quase não passa pela classificação de cinema, pois vai e volta de uma linha cinegrafista ou fotojornalista de captura e montagem de imagens. Como consequência, a obra carece de um direcionamento simples para o que deve ser o seu propósito. “Mostrar a crueza da guerra” jogando atrocidades, sangue, gritos de dor e seres humanos com todo tipo de ferimento é apenas um fetiche cínico diante da violência que, ao final da obra, pelo excesso que nada propõe além do choque, deságua na apatia e no torpor, transformando uma temática poderosa em algo tão chocante e tão reflexivo quanto aquelas imagens nos maços de cigarro. Se temos como pontos inicialmente interessantes a introdução do teatro de guerra, onde se estabelece o medo e o perigo real à vida da equipe de filmagens; e as cenas em que o diretor confronta os moradores de Mariupol que são pró-Rússia (não nos esqueçamos que o governo Putin domina a propaganda na região desde 2014, com o início da guerra civil em Donbas, entre o governo ucraniano e os separatistas da República Popular de Donetsk), a decupagem de todo o restante da fita baseia-se exclusivamente em uma frase sem senso crítico e sem mais nada para além do básico propagandístico: “cenas fortes“.
Em sua escolha de imagens do real, o diretor ainda logrou colocar uma bandeirinha de Stálin ao falar sobre o Exército russo e cuidadosamente eliminou qualquer iconografia nazista/neonazista presente aos borbotões nos uniformes, pertences, bandeiras e armas do Exército ucraniano. Mas isso também é esperado e compreensível, afinal, todo documentário direciona a sua defesa conceitual e ideológica de modo a compor um parâmetro estético que suporte a sua propaganda. No fim das contas, sendo bem frio na análise, explorar a imagem e espetacularizar sofrimento ou tragédias é uma característica desse gênero, quando aborda temas espinhosos, não é? Para tudo, no entanto, há um limite. Se a arte do cinema é, em si mesma, uma extrapolação/reconstrução do real como ponto de vista, objeto de análise, choque, reflexão, crítica ou qualquer coisa do tipo, o próprio cinema, como linguagem, exige que um trabalho maior seja feito diante dessa captura, que a imagem tenha propósito, que um direcionamento até o ponto de chegada seja claro e dê sentido ao que foi capturado. Não fosse assim, para que serviriam os documentários?
Para usar uma simples divisão proposta por Silvio Da-Rin em Tradição e Transformação do Documentário, poderíamos citar filmes que optam por uma câmera-martelo para transformar a realidade; por um câmera-espelho para refletir de maneira criticamente seletiva a realidade; ou por um martelo no espelho, onde, dos cacos, deve-se construir dispersas, parciais e questionáveis interpretações da realidade. Na equação estético-formal de 20 Dias em Mariupol, o diretor se esqueceu (ou será que sabia exatamente o que estava fazendo?) de que a imagem unicamente acompanhada pela cartilha básica de concepção dos documentários — propaganda e direcionamento ideológico — se torna apenas um pastiche exploratório da miséria alheia. Reprisar o óbvio (“vejam como a guerra é ruim e como as pessoas sofrem e morrem de maneiras terríveis na guerra!“) à guisa de denúncia, sem sair da rasa esfera sentimental e da exibição da violência por ela mesma, é sadismo manipulativo. Foi nisto que Mstyslav Chernov conseguiu transformar 20 Dias em Mariupol.
20 Dias em Mariupol (20 dniv u Mariupoli / 20 днів у Маріуполі / 20 Days in Mariupol) — Ucrânia, 2023
Direção: Mstyslav Chernov
Roteiro: Mstyslav Chernov
Elenco: Mstyslav Chernov, Evgeniy Maloletka (população filmada em Mariupol)
Duração: 95 min.