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Crítica | 1964: O Elo Perdido – O Brasil nos Arquivos do Serviço Secreto Comunista, de Kraenski e Petrilak

Quem tem medo das garras tchecas?

por Luiz Santiago
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Quando 1964: O Elo Perdido foi lançado, em novembro de 2017, houve uma tentativa parcialmente frustrada (o que para mim foi surpreendente, especialmente naquele momento da História do Brasil), de tornar a obra um marco definitivo no debate brasileiro referente ao golpe empresarial-militar de 31 de março de 1964. Na esteira de uma ascensão aberta do poder da direita no Brasil (que em pouco tempo colocaria sua faceta extremista também nos holofotes), a publicação da editora Vide popularizou-se apenas no nicho de seguidores de Olavo de Carvalho, revisionistas emocionados, defensores da ditadura no Brasil e alguns curiosos pouco ou nada informados e facilmente impressionáveis com os termos “fontes inéditas” e “espionagem comunista“. Demorou dois anos para que o trabalho dos pesquisadores independentes Mauro “Abranches” Kraenski (brasileiro) e Vladimir Petrilak (tcheco) realmente ganhasse ampla penetração nacional, com o contexto do livro expandido para grupos fora da bolha nativa através de um panfleto audiovisual pró-ditadura amplamente divulgado no Youtube.

Comecemos pelo básico do método: os responsáveis pela pesquisa do livro não são historiadores. O rigor que aplicam na leitura e nas relações internas e externas aos documentos, portanto, é difuso e impreciso. Falta constância. A obra possui lacunas que abrem portas para dúvidas sobre a tradução das fontes e, em alguns casos, a confiabilidade de uma parte dos documentos. Isso torna mais problemática a ausência de uma inserção crítica frente ao material. Não penso, nesse caso, que meu julgamento de historiador esteja cobrando um nível muito alto de responsabilidade acadêmica para indivíduos curiosos que se dispõem a pesquisar, independentemente, fontes primárias inéditas. Ambos são relatados como pessoas com atuação na mídia, portanto, numa linha arguta de jornalismo investigativo, poderiam chegar a um produto maduro, sem demasiada ânsia de querer “inventar a roda da História“; até porque, a única coisa inédita aqui são as fontes, não os fatos. É verdade que inúmeros jornalistas que se dispõem a escrever sobre eventos ou personalidades históricas concebem trabalhos muito ruins. Contudo, temos no Brasil excelentes exemplos de não-historiadores que forjaram coisas de “boas” a “obras-primas“, mesmo não dominando os princípios de produção historiográfica, como nos mostram Laurentino Gomes, Fernando Morais, Daniela Arbex, Lira Neto, Eduardo Bueno e Eliane Brum, só para citar alguns.

Sem apoio de qualquer instituição formal, órgãos científicos, acadêmicos ou governamentais, Kraenski e Petrilak concretizaram uma pesquisa que se distancia do absolutamente lunático e consegue ao menos entregar algo interessante na exposição do material (embora eu suspeite que a curadoria dos documentos não tenha sido das melhores, dada as lacunas analíticas que eu já citei anteriormente). Do livro, a única coisa totalmente imprestável é o prefácio de Olavo de Carvalho. Já no conteúdo, os autores têm a humildade de abordar com cautela a presença do serviço de inteligência da antiga Tchecoslováquia, o StB (Segurança Estatal), aqui no Brasil. Eles não materializam uma ‘teoria da conspiração‘ em cima do fato básico e seguem a trilha de ponto pacífico entre os historiadores brasileiros. Durante a Guerra Fria, serviços de inteligência e espionagem como CIA, MI6, KGB, Mossad, BND e agências, grupos, departamentos e serviços menores, direta ou indiretamente ligados a essas redes, estiveram presentes na maioria dos países economicamente relevantes na comunidade internacional. O recorte de caso, aqui, explora uma interessante documentação inédita, falando do que foi criado pelo 1º Departamento da StB tcheca, que durante os anos de 1952 e 1971, teve, no Brasil, um grupo de 30 agentes e cerca de 100 informantes que colaboraram com o serviço sem saber, os chamados “figurantes“.

A contribuição deste livro para a historiografia brasileira é dar nome a alguns indivíduos e a alguns alvos dos tchecos, durante um possível processo de “implementação revolucionária comunista“. Entre exageros burocráticos, posição anticomunista e insistência no viés de confirmação, os autores utilizam esses documentos para supervalorizar a força da esquerda radical e sua possibilidade de chegar ao poder. O curioso é que os próprios documentos apontam que todos ficaram sem saber o que fazer quando o empresariado mais os militares, após o pânico moral abraçado pela classe média e pela igreja católica na Marcha da Família com Deus Pela Liberdade (19 de março de 1964), respondendo à aposta dobrada do presidente João Goulart no Comício da Central, ocorrido seis dias antes, pressionaram o Executivo, o Congresso e o STF, pavimentando o caminho para a conspiradora vacância da cadeira de presidente da república pelo senador Auro de Moura Andrade; seguindo-se à posse temporária do presidente do Congresso, Ranieri Mazzilli; e, finalmente, em 15 de abril, para a posse do segundo ditador-presidente em nossa História: Humberto Castelo Branco.

Confesso que me impressionei com a prudência da dupla na consideração factual e comparativa frente aos achados, indicando pelo menos um mínimo conhecimento metodológico ao falar da óbvia autopromoção dos comunas através dos relatórios encontrados (o que não é novidade para quem trabalha com documentos estatais ou de agentes públicos — veja, por exemplo, como o jornalista David Grann trata o mesmo tipo de fonte, ao escancarar a autopromoção, as ocultações, as meias-verdades e os exageros nos documentos do FBI, no caso dos Osages, em Assassinos da Lua das Flores). Um pouco dessa discrição também aparece na terceira parte do livro, Grandes Operações no Brasil, quase falam da dificuldade de cruzamento dessas fontes com outras já recolhidas (ou as ainda não encontradas, especialmente da KGB), o que, para qualquer base acadêmica, é um problema conceitual grande. Em nenhum momento, porém, os autores propõem a destruição e esquecimento de 50 anos de historiografia brasileira em prol de uma pesquisa que apenas traz mais material, nomes e funções para algo sobre o qual sempre se falou. Quem adota essa postura alucinadamente revisionista é o prefaciador do volume ou a parte igualmente maníaca do público-alvo.

Quando o conteúdo do livro se tornou mais conhecido, em 2019, muita gente falou a respeito como se isso fosse algo “escondido pelos historiadores de esquerda” desde sempre. Ora, se os Estados Unidos tinham espiões no Brasil, financiaram grupos de propaganda anticomunista e participaram da formulação do golpe empresarial-militar, é óbvio que também haveria agentes comunistas por aqui, tentando, de alguma forma, fazer o mesmo. Assim era a Guerra Fria. A grande pergunta é: a atuação dos comunas tchecos ou dos agentes da KGB (o livro não fala deles, porque não é com esse tipo de fonte que os autores trabalham, mas sim, também havia agentes do Kremlin em nosso país, assim como do Mossad!) era tão imensa a ponto de confirmar a tal “ameaça comunista” e justificar a quebra democrática como se fosse um “contragolpe“? A partir do capítulo XXI, Agentes e Mais Agentes, os autores começam a preparar o caminho para responder a esta pergunta, justificando parte das ações militares, mas sem baterem o martelo na afirmação de que “ou era o golpe militar capitalista… ou seria o golpe espião do comunismo theco“. Um pouco de sensatez não faz mal a ninguém, não é mesmo?

Contudo, não atribuo a posição dos autores a “cautela“, mas a um bem-vindo distanciamento da paranoia golpista. O motivo? Por mais que desejassem e tivessem tentado, os comunistas (fossem os espiões, fossem os brasileiros), não tinham possibilidade alguma de suplantar a ordem burguesa, capitalista e pró-Estados Unidos que dominava o país nas esferas parlamentar, econômica, jurídica, política e militar. Não havia ameaça, porque a esquerda brasileira ou os gatos-pingados vindos de qualquer república soviética ao longo de 20 anos, desde o início da Guerra Fria, não conseguiram sequer eleger uma minoria comunista ou socialista relevante para o Congresso, quem dirá criar uma estrutura de dominação em esferas significativas que oferecessem viabilidade para a tomada do poder pela força, principalmente num país do tamanho do Brasil. A chegada de um trabalhista, como João Goulart, ao Executivo, foi uma consequência inevitável da democracia, posto que ele era vice de um presidente que renunciou ao cargo. E notem que desde a imposição do parlamentarismo a Jango (1961-1963), a senda golpista vinha deixando claro que pleiteava outro projeto de país e não se importaria em implementá-lo de forma escusa… nem que para isso fosse se escorar em uma não-ameaça. O nosso eterno Plano Cohen…

Diferente do que Olavo de Carvalho defende no prefácio, 1964: O Elo Perdido não traz nada que a historiografia nacional não soubesse, não revela nada de modificador na linha analítica sobre o golpe (embora o caráter de “furo jornalístico” e de sensacionalismo seja a tônica de um pedaço do livro, tornando alguns capítulos insuportáveis) e não consegue se opor aos documentos que provam a participação ativa dos Estados Unidos no golpe, até porque, esses documentos vêm passando por escrutínio intenso desde os anos 1980. Mas justiça seja feita: nem os autores propõem isso. O que eles exibem, através dos documentos, é que um dos trabalhos dos espiões tchecos era exagerar/difamar a participação do Tio Sam aqui nos trópicos, além de criar uma base de informação em cargos estratégicos do país, algo que, para frustração da agência, nunca aconteceu.

De positivo, o livro nos traz novos documentos e não há historiador que resista a uma raridade no campo das fontes primárias, pois aí reside uma boa oportunidade de analisar singularidades históricas e incrementar os caminhos de discussão sobre o tema. Confesso que me impressionei com o tom geral do volume. Sabendo a que tipo de grupo os autores estão ligados, suas defesas sociais, econômicas e ideológicas, eu esperava algo completamente estapafúrdio na criação da tese que acompanharia os achados. Não é o caso. A abordagem é metodologicamente ruim, mas não é desprezível. A escrita tende a uma nutrição de “dores causadas pelos infames comunas“, mas este é um tique ideológico como o qual eu, já macaco velho em contato com obras de espectro político oposto ao qual pertenço, consigo dialogar bem, até certa linha. Desde que seja mantido o mínimo de seriedade e abordagem historicamente aceitável, sem manipulação das fontes, clamores de destruição de uma base amplamente provada e ao menos pitadas de honestidade intelectual, dá para tirar alguma coisa positiva do projeto, como de fato, eu tirei. O “elo perdido“, aqui, é a satisfação de deparar-se com documentos atípicos e adicioná-los à grande equação de nossa produção historiográfica sobre “o dia que durou 21 anos“. Ditadura, nunca mais!

1964: O Elo Perdido – O Brasil nos Arquivos do Serviço Secreto Comunista (Brasil, 2017)
Autores: Mauro “Abranches” Kraenski e Vladimir Petrilak
Editora: Vide
508 páginas

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