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Crítica | 1917 (2019)

por Michel Gutwilen
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Há uma semana, em minha crítica de Ameaça Profunda, eu falava sobre o conceito de filme gameficado, ou seja, com aparência de video game. Não queria soar repetitivo, mas é um pouco difícil fugir desse pensamento ao refletir sobre 1917 — o que pode ser um indicativo de uma tendência na indústria cinematográfica atual. Todavia, dentro dessa lógica, não é como se estivéssemos jogando com um controle na mão. O novo longa de Sam Mendes está mais para um simulador ou como se colocássemos um capacete de realidade virtual que nos transporta diretamente para uma tour voyeurística na Primeira Guerra Mundial filmada por Roger Deakins (Blade Runner 2049).

Na narrativa, seguimos dois cabos britânicos, Schofield (George MacKay) e Blake (Dean Charles Chapman). A tarefa dos dois consiste em atravessar as linhas inimigas, devendo entregar uma mensagem para uma outra divisão do exército inglês. Esta se mostra de caráter urgente, pois eles devem cancelar uma ofensiva prestes a ser realizada. Afinal, eles haviam descoberto que tal ataque iria levar mais de mil soldados para uma armadilha alemã — inclusive o irmão de um dos dois protagonistas, o tenente Blake (Richard Madden).

De fato, não há nenhum roteiro muito elaborado por trás de 1917. O que de forma alguma se mostra um problema, já que sua força reside muito mais na maneira como aquela experiência é encenada. Se tirarmos todos os artifícios do filme, deixando apenas seu esqueleto, trata-se de apenas dois homens indo do ponto A ao B. Enquanto isso, complicações surgem no meio do caminho e aliados (vividos por atores famosos como Colin Firth, Andrew Scott, Mark Strong e Benedict Cumberbatch) surgem aleatoriamente para avançar a trama, basicamente como NPCs (personagens não jogáveis) de um video game que te dão uma missão ou auxiliam em seu progresso, sem um desenvolvimento próprio.

Curioso que, ao seguirmos esta perspectiva de jogo, o longa pode ser comparado com o polêmico lançamento Death Stranding, acusado (injustamente) por muitos de ser um walking simulator — já que o seu protagonista, basicamente, só anda. Da mesma maneira, é um pouco isso que acontece aqui. Schofield e Blake atravessam trincheiras apertadas, esbarram em soldados, pisam em corpos mortos, se jogam na lama com ratos e, em raros momentos, conversam sobre assuntos cotidianos, como quando tentam lembrar a origem do apelido de um colega. Portanto, a preocupação de Mendes não reside na realização de um grande filme de ação, mas justamente nesta experiência de um passeio pelo inferno no qual ele vai guiando nosso olhar por aquele terror nos momentos antes e depois dos conflitos.

Aliás, eu diria que a câmera funciona praticamente como um terceiro homem invisível nesta jornada — o espectador. O próprio fato de sua movimentação ter que fazer um malabarismo muito visível para desviar dos protagonistas e, por muitas vezes, direcionar o olhar para elementos de interesse, tirando os personagens do plano, me faz pensar sobre sua existência autônoma. Certamente, muito será discutido sobre a função do plano-sequência em 1917 (assim como em Birdman), com alguns afirmando que se trata de uma escolha estética exibicionista de Mendes ou outros falando que ele age em prol de uma aproximação do filme com a verossimilhança. Nem um e nem outro, pois penso que ele revela toda a artificialidade do filme como um simulador controlado. Estamos perto demais dos personagens para sentirmos aquela imersão, mas não o suficiente para nos machucarmos.

Com toda sua primazia técnica escancarada, gosto de pensar em 1917 fazendo um contraste com os documentários feitos durante a Segunda Guerra Mundial. No passado, grandes diretores como Frank Capra se arriscaram verdadeiramente fazendo imagens das do terror da guerra como um registro histórico para o cidadão que havia ficado em casa. Logo, o cinema era apenas um meio para um grande maquinário propagandista, mas que você sabia que aquelas imagens eram reais. Hoje, você sabe que aquelas imagens não são reais, mas com as tecnologias disponíveis na mão de grandes estúdios, a emulação de eventos passados se tornou tão obsessiva, que diríamos que chegamos ao nível do ultra realismo autodestrutivo.

Isto é, o nível de meticulosidade na recriação do real se torna tanto, que ele parece ultrapassar essas barreiras e revela sua própria artificialidade. A preocupação é tanta em esconder os cortes que te induz a procurá-los. De mesmo modo, isso é algo que fica evidente principalmente se pensarmos nos trabalhos de Deakins (fotografia) e de Thomas Newman (trilha sonora), que elevam o filme para um tom mais épico do que qualquer narrativa realista poderia se propor.

Não me cabe estudar aqui a psique humana, até porque não tenho propriedade no assunto, mas me soa muito curioso como nós, espectadores, ficamos fascinados cada vez mais em experiências realistas que nos façam sentir, ainda que momentaneamente, a adrenalina de um evento passado. Por outro lado, os homens que verdadeiramente vivenciaram aquele terror fariam de tudo para fugir dele. Nesse sentido, 1917 me parece um filme que perfeitamente atende tal demanda atual de mercado. Um tremendo deleite para os olhos e catártico para aqueles que estão satisfeitos em experimentar um terror controlado, mas que constantemente te relembra que nada daquilo é real — justamente por ser um real calculado demais.

1917 (1917) – EUA, Reino Unido, 2019
Direção: Sam Mendes
Roteiro: Sam Mendes, Krysty Wilson-Cairns
Elenco: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Mark Strong, Andrew Scott, Richard Madden, Claire Duburcq, Colin Firth, Benedict Cumberbatch, Daniel Mays, Adrian Scarborough
Duração: 119 min.

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