Após o grande sucesso de 1808, obra que despertou o interesse de um público até então pouco familiarizado com a história nacional, o jornalista Laurentino Gomes avançou em seu projeto com foco na Independência do Brasil, desdobramento natural do Período Joanino (1808-1821). Em 1822, o autor desmonta mitos em torno do 7 de setembro, revelando um processo marcado por tensões e contradições, longe da narrativa simplista de uma “transição amigável” protagonizada pelo herdeiro do trono português. Mantendo a linguagem acessível que consagrou seu estilo — uma mescla de jornalismo e reflexão histórica –, o autor reconstrói um período turbulento sem cair em manipulações e desonestidade diante dos fatos, convidando o leitor a mergulhar nas incertezas que moldaram o início Brasil independente.
O texto é bastante objetivo e, na versão que li para esta crítica (edição revista e ampliada, lançada em 2015, pela Globo Livros), Laurentino Gomes explora, no melhor estilo “Revista Caras da História”, a situação do Brasil após a partida da Família Real. Nos capítulos iniciais, vemos reforçada a improbabilidade do sucesso de um movimento independente acontecendo entre imensas divisões sociais, uma economia aprisionada pelos latifundiários e uma população majoritariamente analfabeta, dominada por uma elite desinformada, preguiçosa, cruel e alheia aos desafios de convivência entre diversos grupos étnicos e culturais. Em termos de construção de conhecimento, não é muito interessante a compartimentação feita pelo autor, muitas vezes optando pelo espetáculo (embora muito menos do que fez em 1808) e deixando aspectos mais complexos de lado, especialmente quando aborda a situação financeira do país, antes e durante os dois anos das guerras da independência.
Os arquétipos destacados no subtítulo do livro, a saber, o “homem sábio” (José Bonifácio), “princesa triste” (D. Leopoldina) e “escocês louco por dinheiro” (Lord Cochrane) ganham destaque com capítulos que narram a história de suas vidas, suas ideias e a importância que tiveram no processo da independência. De Bonifácio, ressaltam-se as convicções progressistas, especialmente o abolicionismo: um contraponto à rigidez dos ideais da época. De Leopoldina, a sensibilidade e a habilidade para transmitir informações cruciais no momento certo, além de sua marcante mentalidade política. De Cochrane, as contradições e as polêmicas, refletindo a complexidade dos interesses nos bastidores da independência e até mesmo a ligação do nosso processo com os de outros movimentos político-sociais que tomaram a Europa e as Américas entre os séculos XVIII e o XIX. Como já ressaltei, muito dessa abordagem é permeada de um tom de romance histórico, mas isso não atrapalha a leitura, apenas dá uma quebra em relação ao peso e ao rigor acadêmico da pesquisa (que, claramente, é de qualidade), deixando muitos assuntos à superfície.
Revisitando a figura de Dom Pedro I, o livro propõe uma desconstrução da imagem idealizada que, em muitas narrativas, retrata-o como herói imaculado da pátria. O autor começa destrinchando o icônico dia 7 de setembro, trazendo diferentes relatos sobre as vestimentas, o contexto da viagem a Santos, a tomada de decisão às margens do riacho do Ipiranga e uma larga e necessária abordagem a respeito da fictícia pompa (apesar de muito bonita) do famoso quadro de Pedro Américo, datado de 1888. Depois de consumada a independência, o autor passa por diversos personagens e contextos que tiveram participação direta ou indireta na separação do Brasil em relação a Portugal, com destaque para os ótimos capítulos A Guerra (para mim, o melhor do livro), A Batalha do Jenipapo, A Bahia e A Maçonaria.
As teses e o caminho conclusivo do autor estão bem amparados por fontes de diferentes épocas e por reconhecidas metodologias, contando com uma leitura honesta do material consultado; trabalhado para chamar atenção de um público menos familiarizado com livros acadêmicos, sem impor revisionismos bizarros. Isso dá ao projeto um ar investigativo, instigante e, ao mesmo tempo, valorizador da pluralidade de interpretações possíveis. É claro que isso, eventualmente, faz com que a leitura perca detalhes e que eventos sejam exibidos como curiosidade, não como situação a ser analisada. Todavia, a base bem fundamentada e a respeitada bibliografia apresentada permitem ao leitor mais curioso correr atrás de complementos que não sejam focados no espetáculo, conferindo mais um ponto positivo para o autor.
1822 cerca a improbabilidade dos eventos que levaram à independência do Brasil — somando-se aí a manutenção dos contornos geográficos do país, com exceção da Cisplatina — e a jornada de lutas que conduziu a nação até a consolidação de sua soberania. O livro não se limita a celebrar o famoso 7 de setembro, mas expõe as problemáticas de um projeto político que, embora ambicioso, manteve desigualdades — como a escravidão — e usou da força para calar e matar opositores, ou mesmo contornar regras inconciliáveis, como aconteceu na Constituinte de 1823. Apesar de certas lacunas analíticas, a obra cumpre seu propósito maior: democratizar o acesso a uma História crítica, sem abrir mão do rigor factual e sem inventar besteiras diante das fontes, como tantos jornalistas fazem por aí. Aqui, Laurentino Gomes reforça seu papel de divulgador da historiografia brasileira, equilibrando narrativa cativante e compromisso com a verdade. É uma boa porta de entrada para quem deseja entender como o Brasil, entre acasos e vontades das mais diversas, tornou-se uma nação cheia de contradições, mas irresistivelmente fascinante.
1822: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram dom Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado — Brasil, 2010
Autor: Laurentino Gomes
Editora original: Nova Fronteira
376 páginas