Inspirado na obra As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, este gracioso longa de Yoshio Kuroda conta a história de um garoto sem-teto chamado Ted (ou Ricky, na versão americana) que entra clandestinamente em um cinema onde estava sendo exibido As Viagens de Gulliver. Após ser expulso do local pelo lanterninha, o garoto reclama que não tem muita sorte na vida, e então sobem os créditos de abertura, como um gancho misterioso. Esse recurso serve perfeitamente para criar o ambiente de surpresa que constitui todo o filme, e que descobrimos apenas no final.
Com os principais elementos da obra de Swift, emprestando de Hans Christian Andersen e do cânone da ficção científica um bom número de ingredientes, o roteiro de As Viagens Espaciais de Gulliver é maravilhosamente imaginativo, não poupando do público o lado social que marca a vida do protagonista (ele é um morador de rua, afinal de contas), mas também mostrando com delicadeza a formação do caráter do menino, seu lado altruísta, fraterno e solidário. O interessante é que esses elementos não estão postos nas entrelinhas, como geralmente fazem bons animadores que provavelmente teriam problemas com o estúdio caso expusessem essas posturas para seus personagens. É claro que há simbolismos, mas eles são um espetáculo à parte. O trabalho de desenvolvimento para o personagem principal, no entanto, é o mais claro possível.
As Viagens Espaciais de Gulliver foi um dos primeiros trabalhos em que Hayao Miyazaki (na época, com 24 anos) esteve envolvido, e sua participação no longa chamou a atenção a Toei, o que não é de se espantar. O animador contribuiu com as sequências finais do filme, entre a luta de Ted, Gulliver e seus amigos (um cão, um pássaro e um “Coronelzinho de chumbo“) contra o grande robô; além da revelação da verdadeira face da princesa, um resultado poético e esteticamente belo. Até a cena final, embora reticente e fraca por seu caráter narrativo, recebe um bom tratamento de animação de cor, tendo, pelo menos nesse ponto, um resultado interessante.
O roteiro consegue prender o espectador e tem um conceito narrativo muitíssimo inteligente. O espectador pode achar estranho um ou outro elemento, mas, exceto para o encadeamento das coisas no desfecho, tudo é aceitável dentro do universo onírico e fantasioso que o texto propõe construir. Existem ótimas cenas musicais e tendências surrealistas que denotam um grande trabalho de animação e boa direção, já que esses elementos adicionam muito ao universo de Ted e não traem a base central da história, com acontecimentos estranhos e também críticos do livro de Jonathan Swift.
Bem humorada, humanitária e imaginativa, a história de As Viagens Espaciais de Gulliver não encantará ou interessará apenas ao público infantil, mas a todas as faixas etárias — ou pelo menos aos espectadores que possuem o mínimo de ímpeto sonhador dentro de si. Mesmo com um final marcado por falhas narrativas (faço questão de ressaltar que o problema é do roteiro, não de animação), o longa é uma ótima fantasia de ficção científica, com direito a retrocesso temporal, revolução de máquinas e exploração de uma parte curiosa do universo, com um desfecho extremamente realista, um dos melhores exemplos de sonho fantasioso em contraste com a dura realidade da vida.
Gulliver’s Travels Beyond the Moon / Space Gulliver (Gariba no uchu ryoko — Japão, 1965
Direção: Yoshio Kuroda
Roteiro: Hideo Osawa, Shin’ichi Sekizawa (inspirado na obra de Jonathan Swift)
Elenco (vozes): Herb Duncan, Robert Harter, Chiyoko Honma, Darla Hood, Masao Imanishi, Seiji Miyaguchi, Shôichi Ozawa, Kyû Sakamoto, Akira Ôizumi
Duração: 80 min.