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Crítica | A Hora do Descarrego

O exorcismo na era das redes sociais e aplicativos.

por Leonardo Campos
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O exorcismo é uma prática religiosa ainda muito associada ao analógico. No mundo atual, era na qual somos dominados pela ciência e tecnologia, a figura do diabo e dos demônios e o medo diante da possessão subsiste e ganha força em muitas sociedades. A figura do diabo pode ser considerada um símbolo universal presente no espírito humano, interpretada de maneira benéfica nalguns momentos, sendo a maioria das vezes, apresentada de maneira maléfica. Dramas existenciais, fenômenos sociais, históricos e psicológicos, no caso dos exorcismos, perpassam pela figura alegórica de Satanás e de sua legião de entidades. No geral, as celeumas de indivíduos isolados e até mesmo de sociedades inteiras muitas vezes passam por essa visão conectada ao “infernal” como explicação para crises e conflitos humanos. Foi isso que o pesquisador James Orestes apresentou no IX Fórum de História Antiga, realizado em 2010 no Rio de Janeiro, num trabalho intitulado As Metamorfoses de Satã: Ressignificações do Mal, anotação resgatada de uma época de levantamento de dados sobre leituras voltadas ao tema exorcismo, cinema, cultura, dentre outras palavras-chave, algo que uma década depois, ainda continua sendo retomado pela indústria que continuará constantemente interessada na temática.

As redes sociais e aplicativos, criados para facilitar as novas vidas na contemporaneidade, muitas vezes se transformam em recursos infernais. É o que podemos compreender do filme que será analisado mais detidamente nos parágrafos seguintes. A cibercultura, espaço demasiadamente ambivalente, oferta-se para os usuários como um terreno de contradições. Da conquista e da cobiça. Da construção e da destruição. Do reconhecimento e do cancelamento. Aqui, no desenvolvimento do peculiar A Hora do Descarrego, a atual cultura das mídias funciona como o espaço para a circulação das forças malignas que engendram o seu plano diabólico de maneira tão contundente que no desfecho, a audácia do projeto infernal nos é revelado e ficamos num misto de entusiasmo com postura contida, pois as boas ideias ganham uma execução repleta de malabarismo, algo que podemos definir como o entrelugar dos filmes de exorcismo. Em suma: a produção em questão consegue manter um pouco do padrão das narrativas que copiam a fórmula do clássico O Exorcista, tais como Possessão, Dominação, O Ritual, mas quase fica no mesmo setor que as histórias menores, naquele estilo lançado diretamente em DVD ou streaming, elencadas no artigo Os Filmes de Exorcismo Ainda Funcionam?

Dirigido e escrito por Damien Leveck, realizador que na parte dramática, contou com o apoio de Aaron Horwitz, A Hora do Descarrego é baseado num curta-metragem do cineasta, lançado em 2016, transformado em projeto maior para 2021, narrativa de 94 minutos que nos apresenta a rotina de dois amigos que comandam um espetáculo de exorcismo falso a cada edição do programa com o mesmo nome do filme, transmitido por redes sociais e acompanhado por uma numerosa massa de seguidores. O problema é que numa determinada edição, o que era para ser falso acaba se tornando uma macabra jornada de horror sobrenatural, transmitida para o público que assiste num misto de surpresa e pavor, o ritual que ganha proporções gigantescas e coloca a vida de todos em risco, dos participantes nos bastidores do programa aos que assistem o espetáculo por computador ou tela do smartphone. Enquanto Drew (Ryan Guzman) usa o seu charme como o padre apresentador, Max (Kyle Gallner) atua na produção, no comando da parte técnica, gerenciando os efeitos especiais, a sonoplastia e outros elementos.

Certo dia, a atriz convidada para assumir o posto de suposta vítima de uma entidade macabra não aparece. Eles não sabem de nada, mas nós contemplamos as forças das trevas a impedir que a travesti intimada para o projeto seja aniquilada antes de chegar ao galpão das gravações, local situado numa zona erma da cidade, construída por uma atmosfera misteriosa, graças ao design de produção de Lauren Slatten, funcional, bem como a direção de fotografia de Jean-Phillipe Bernier, também eficiente para a proposta, escurecida nos momentos certos e vertiginosa nos trechos que pedem uma captação de imagens nervosas, adornadas pelos efeitos visuais supervisionados pela equipe de Marcus Alexander, setor com pouco orçamento, mas também em consonância com as possibilidades do projeto que investe bastante em maquiagem, design de som (de Edmond Coblentz) e diálogos bizarros e macabros. Tudo isso, somado ao trabalho da dupla Sean e Juliette Beavon na trilha sonora, transformam A Hora do Descarrego numa experiência de puro horror, mesmo que não seja o melhor dentro do subgênero “possessão”.

Voltemos, no entanto, ao sumiço da convidada. Após constatarem que não tem a personagem para a sessão, decidem colocar Lane (Alix Angelis) para assumir o papel da ausente. O lance é que a garota vai de fato ser possuída por uma entidade que aos poucos, revela-se bastante agressiva, intensa e colocará todos os membros da equipe numa situação perigosa, ameaçadora, sem expectativa de sobrevivência. Não há garantias em A Hora do Descarrego, um plot twist é algo que esperamos a todo instante e a forma sincera que o cineasta Damien Leveck se entrega ao projeto vale a chance que damos ao filme, mesmo com suas irregularidades. Aqui, temos uma representação demoníaca clássica, aterrorizante, numa dinâmica diferenciada para os habituais filmes de exorcismo, numa produção que mescla possessão com uma considerável contagem de corpos. É tanta morte que lembra até uma narrativa slasher. Em seu desenvolvimento, há críticas ao atual cenário da cultura da internet e das redes sociais, mas nada de surpreendente. O que temos é um exercício da linguagem dos filmes de terror, trabalhada dentro da medida do possível, haja vista o orçamento disponibilizado para esta produção estranha, mas não menos curiosa. Material para uma atualização da pesquisa do historiador mencionado na abertura, a produção em questão é a prova cabal da ressignificação do mal para a nossa atual era cibernética. É o espaço em potencial para a circulação mais eficiente do maligno aqui em “estado puro”.

A Hora do Descarrego/A Hora do Exorcismo (The Cleasing Hour/Estados Unidos, 2021)
Direção: Damien LeVeck
Roteiro: Damien LeVeck, Aaron Horwitz
Elenco: Kyle Gallner, Ryan Guzman, Alix Angelis, Joanna David, Emma Holzer, Tara Karsian, Giulia Nahmany, Chris Lew Kum Hoi, Matt Raimo, Amrou Al-Kadhi, Daniel Hoffmann-Gill, Zara McDowell, Dan Ursu, Ana Udroiu, Sam Hale
Duração: 94 min.

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