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Criticar quadrinhos antigos é bastante delicado. E a tarefa é ainda mais difícil e ingrata quando os quadrinhos são do super-herói mais importante da Nona Arte, o Superman. Afinal, depois de uma longa gestação de cinco anos, Jerry Siegel e Joe Shuster finalmente conseguiram convencer uma editora a publicar sua criação, transformando a Action Comics em um sucesso instantâneo. No entanto, estamos falando de 1938, ou seja, quase 80 anos atrás, no início da Era de Ouro dos quadrinhos que Siegel e Shuster começaram sozinhos. Assim, falar sobre Action Comics é como falar do Big Bang de uma indústria e rebobinar o estado de espirito oito décadas é complicado, mas necessário.
A Action Comics foi uma das primeiras “revistas em quadrinhos” – no formato de antologia na verdade, com 64 páginas contendo diversas histórias diferentes -, mas as histórias em quadrinhos em si já existiam há décadas, começando ainda no século XIX. No entanto, o que antes existia era substancialmente em formato de “tiras de jornal”, normalmente bem menos complexas que histórias mais robustas e intrincadas que o formato mais longo passou a exigir. Além disso, apesar de muitos heróis extravagantes (Tarzan, Buck Rogers e Flash Gordon, dentre outros), nenhum deles era o que se convencionaria chamar de “super-herói”. Superman e a Action Comics representam o começo de tudo e apagar da mente o mundo atual dos quadrinhos para voltar no tempo e julgar o conteúdo das histórias sem preconceito é uma tarefa hercúlea que este crítico talvez não tenha conseguido.
As críticas abaixo são para cada um dos sete primeiros números da publicação, todas as edições da Action Comics lançadas no importantíssimo ano de 1938. No entanto, os comentários dizem respeito somente ao material relacionado com o Superman.
Action Comics #1
(junho de 1938)
A avaliação cinco estrelas acima, para Action Comics #1, não tem relação direta com sua qualidade intrínseca. Longe disso, aliás. No entanto, levei em consideração, aqui, o que essa história representa para os quadrinhos em geral e, particularmente, para os de super-herói. É o começo de tudo. É o momento em que os portões se abriram para uma nova mídia, uma nova forma de exploração de personagens. É o começo de uma indústria que até hoje captura a imaginação de milhões de leitores mundo afora.
Mas, voltando um pouco de minhas divagações, a história de Superman contida aqui precisa ser entendida dentro de um contexto específico. Abordei a questão no artigo histórico sobre o personagem que o leitor encontrará aqui, mas que resumirei para facilitar: Jerry Siegel, o roteirista, queria porque queria colocar sua criação em jornais, na forma de “tirinhas”, por achar que esta seria a melhor maneira de explorá-la e de garantir emprego a longo prazo. Foram anos tentando fazer com que os syndicates (as agências que controlam essas publicações nos EUA) comprassem o Superman, somente para receber negativas atrás de negativas. Sem saída, Siegel e seu parceiro Shuster, então, acabaram vendendo o personagem para a Detective Comics, Inc., que estava para lançar uma nova publicação, a Action Comics.
Com isso, a estrutura que vemos no primeiro número é a de “tirar de jornal”, mais especificamente daquelas dominicais, um pouco maiores. Em apenas 13 páginas, Siegel e Shuster contam a origem de Superman, uma história em que o herói tenta salvar um condenado do corredor da morte, outra de violência doméstica, mais uma em que somos apresentados a Lois Lane, que detesta Clark Kent, mas adora o Superman e, finalmente, a última de escopo bem maior em que Superman se envolve em uma guerra na fictícia república sul-americana de San Monte. Enquanto a origem e as três primeiras histórias são auto-contidas, a última acaba com um cliffhanger que se encaixa diretamente no número seguinte da publicação.
Alguns aspectos são curiosos. Na origem, descobrimos que uma criança foi enviada por seus pais de um planeta sem nome à beira da destruição por “velhice” (sim, Siegel escreve “old age“) e, ao chegar à Terra, um motorista a acha e manda para um orfanato, onde ela demonstra ser super-forte. Quando Superman chega à maturidade, ele é capaz de “pular 1/8 de milha”, “transpor um prédio de 20 andares”, “levantar pesos tremendos” e “correr mais rápido que um trem expresso”. Além disso, “nada a não ser uma bomba pode penetrar sua pele”. Além disso, esses poderes bastante limitados se comparados com os que Superman tem hoje não se dão em razão do sol amarelo que banha a Terra e sim são inatos ao extraterrestre e são todos eles explicados por meio de uma comparação com formigas e gafanhotos, as primeiras como sendo capazes de levantar várias vezes seu peso e os outros como sendo capazes de pular muito alto.
Chega a incomodar a “tosquidão” das explicações de Siegel e Shuster, mas elas fazem parte desse laboratório que foi a Action Comics para o herói, que aos poucos ganhou refinamento. Além disso, origens simplificadas assim marcaram a Era de Ouro dos quadrinhos, em que todo o experimento ou acidente cria um novo herói, algo que, se pensarmos bem, não mudou tanto assim.
Os desenhos de Shuster pecam incrivelmente nos detalhes. É difícil ver variação nas feições dos personagens e a movimentação do Superman carece de dinâmica e de urgência. No entanto, absolutamente todos os traços que marcariam para sempre o herói estão lá para quem quiser ver: o uniforme espalhafatoso (que variava muito nesses números iniciais, às vezes sem botas, outras sem cinto e com o símbolo no peito variando tremendamente), a persona de Clark, de Lois e de Perry White (que aparece, mas ainda sem nome), além da redação do jornal Daily Star (o batismo de Daily Planet só aconteceria depois) onde Clark trabalha.
A natureza episódica de Action Comics #1 certamente fará o leitor moderno olhar com desconfiança para a publicação, mas ela é importante demais para ser ignorada.
Action Comics #2
(julho de 1938)
Apesar de não aparecer na capa (algo que só se repetiria no número 7), Superman é a estrela imbatível de Action Comics #2 (confiem em mim, pois as demais histórias são tenebrosas…). Aqui, finalmente, a característica de “tira de jornal” desaparece, com Siegel contando uma história só.
E a história, como mencionado na crítica anterior, lida com Superman se envolvendo em uma guerra na república fictícia de San Monte. O leitor estranhará o fato de Superman não se envolver na Segunda Guerra Mundial que estava para eclodir, mas a DC Comics tomou a decisão deliberada de mantê-lo longe do conflito, diferente da Timely Comics, predecessora da Marvel, e seu Capitão América.
O que vale nota, na história, é uma estranha estratégia que Superman adotaria repetidas vezes ainda: a de atuar disfarçado. Assim, na segunda metade da história, passada efetivamente em San Monte, Clark chega a se alistar no exército local para forçar que Emil Norvell, um magnata fabricante de munições, lute na guerra para aprender uma lição valiosa. Chega a ser desconcertante não ver o uniforme vermelho, azul e amarelo de Superman por boa parte da história, especialmente em razão dos traços poucos chamativos de Shuster ao desenhar “pessoas normais”.
O roteiro de Siegel tem seu valor, por tratar de um assunto que hoje é de extremam relevância: a indústria da guerra. É um texto surpreendentemente lúcido e até mesmo adulto para o público-alvo da publicação. Pontos para Siegel aqui, que não descamba para a bobeira e torna Superman relevante logo em seu nascedouro.
Action Comics #3
(agosto de 1938)
Uma mina desaba e Superman corre (literalmente) para ajudar, mas, no lugar de simplesmente chegar no local da tragédia e usar sua super-força para fazer o que tem que fazer, ele se dá ao trabalho de se disfarçar de minerador, fingir que caiu dentro do buraco e, então, ajudar os sobreviventes sem revelar que Superman esteve por lá. Essa escolha narrativa de Siegel, enquanto até tem um semblante de lógica no número anterior, perde completamente o sentido aqui.
E o mais interessante é que Superman continua com o disfarce para dar uma lição ao dono da mineradora que não se preocupou com as medidas de segurança do local. A concatenação de ideias e os acontecimentos desencadeados a partir dali, com os ricos locais indo terminar a festa na mina (logo depois do desabamento!) e Superman usando a oportunidade para mostrar o horror que é trabalhar sem as mínimas condições de segurança, são risíveis, por mais nobres que tenham sido as intenções de Siegel. Chega a doer de tão amador.
A arte de Shuster também não tem melhor sorte, considerando que grande parte da história envolve um bom número de gente comum atuando normalmente, sem dar oportunidade ao artista de soltar as rédeas. A história de Superman em Action Comics #3, apesar de ter apenas 13 páginas, é difícil de ler.
Action Comics #4
(setembro de 1938)
Um atropelamento em que o motorista foge leva Superman a aleatoriamente entrar em um trem, ouvir uma história de gangsteres interferindo no futebol americano universitário e, a partir daí, sequestrar e drogar um jogador para se disfarçar como ele e armar uma arapuca para os vilões. Está coçando a cabeça? Pois é para coçar mesmo.
O raciocínio narrativo de Siegel deve ter sofrido um derrame aqui, pois a história é completamente sem pé nem cabeça. O pulo que o autor dá entre o atropelamento e a questão dos gangsteres é daquelas que faz o leitor reler a história só para ver se é isso mesmo assim, completamente sem conexão. E é, não tem jeito.
E o plano do Superman de se disfarça como um jogador da reservar é hilário, para não dizer outra coisa. Se tem uma história que prova que o herói nem sempre teve a imagem de bom moço que tem hoje em dia, é essa. Vale a leitura pelo inusitado da coisa, mas só.
Action Comics #5
(outubro de 1938)
O quinto número de Action Comics finalmente dá a Superman o tipo de história pelo qual ele seria conhecido nas décadas seguintes: a ação grandiosa, impossível, daquelas que realmente empolgam o leitor apesar da simplicidade. Aqui, vemos Siegel e Shuster devolver o uniforme colorido ao herói por todo o tempo e criar uma narrativa coesa, lógica e que serve de plataforma para Superman efetivamente mostrar seus poderes.
E o caso em que Superman se envolve é simples: a represa de Valleyho começa a rachar depois de uma chuva. A cidade local está ameaçada e Perry White (ainda sem ser nomeado – ele é apenas o “chefe”) manda Clark para lá cobrir o evento. O interessante, porém, é ver que Lois Lane literalmente trai Clark, fingindo estar interessada por ele e dizendo que White, na verdade, pediu para ele cobrir o nascimento de “séptiplos” no hospital local.
Quando Clark percebe que foi engrupido (é muito mané esse Clark Kent…), ele corre para Valleyho e a ação efetivamente começa, ação essa que foi muito claramente homenageada em Superman – O Filme, de 1978, com a represa arrebentando, Lois quase morrendo (bem, no filme ela efetivamente morre) e Superman salvando o dia. Tendo espaço para trabalhar até com menos texto de Siegel para “poluir” os quadros, Shuster entrega um de seus melhores trabalhos até esse ponto, especialmente ao finalmente calçar Superman com suas icônicas botas vermelhas.
Action Comics #5 é o número que, para todos os efeitos, apresenta o Superman da forma que seria cristalizada como sendo a marca registrada do herói.
Action Comics #6
(novembro de 1938)
O sexto número de Action Comics tem dupla importância história: é a primeira vez que Superman é chamado de Homem de Aço (em uma manchete do Daily Star que diz “Mystery Man of Steel Re-appears“) e é a primeira vez que Jimmy Olsen em tese aparece, como um office boy loiro sem nome e que, depois, seria retroativamente batizando dessa forma.
Em termos de história, ela é muito mais interessante hoje do que foi em sua época, porém. Afinal de contas, apesar de ter alavancado as vendas da revista, as histórias do Superman ainda não tinham a dimensão impressionante que teria dentro da indústria do entretenimento e a narrativa de Siegel – que é um impressionante exercício de futurologia – lida com um farsante que diz ter a licença para explorar o nome e a imagem do Superman, colocando o personagem para vender carros, combustível e tudo mais. Siegel viu o futuro? Previu o potencial de seu personagem? Possivelmente.
E a narrativa continua interessante, ainda que absurda, com o farsante tentando provar para Lois Lane que o ator que contratou para vestir o uniforme do Superman é mesmo o Superman. Mais interessante do que essa história, é ver que Lane é realmente uma gigantesca traidora capaz de tudo para conseguir uma história. Se, no número anterior, ela conta uma mentira para Clark, aqui ela finge querer sair com ele e chega a dopá-lo com um sonífero!
A diversão é garantida exatamente por essas situações extremas e, porque não, bizarras.
Action Comics #7
(dezembro de 1938)
O último número do primeiro ano de Superman é também apenas o segundo a ter o herói na capa, com a promessa de que ele apareceria “neste número e em todos os números” estampada em letras nada discretas. A história remete à uma das inspirações de Siegel para o herói: os “homens fortes” de circo, como Breitbart e Greenstein.
Para ajudar um circo largado às moscas, Superman convence o dono a empregá-lo como um strong-man, o que atrai um gigantesco público para o show, levando um mafioso que quer o circo para ele a tomar medidas extremas que, claro, são impedidas pelo herói. A narrativa é simplista e inocente e não empolga. Serve apenas como uma forma canhestra de mostrar as habilidades de Superman e não muito mais do que isso.
Shuster se perde um pouco na arte, deixando a desejar nos detalhes de fundo e nas feições das pessoas, algo que já não era o forte dele, mas que fica mais saliente aqui. Além disso, por alguma razão misteriosa, as botas de Superman são amarelas nesse número. Erro na impressão? Um teste de Shuster? De toda forma é bom saber que a cor vermelha logo voltaria.
Action Comics #1 a #7 (EUA – 1938)
Roteiro: Jerry Siegel
Arte: Joe Shuster
Editora original: Detective Comics, Inc.
Data original de publicação: junho a dezembro de 1938
Páginas: 13 a 14 cada número (só as histórias de Superman)