Contexto importante: esta crítica foi escrita onze dias depois dos 5 ataques coordenados pelo Estado Islâmico em Paris e Saint-Denis, na noite de 13 de novembro de 2015, e que resultou na morte de 137 pessoas, sendo 130 vítimas e 7 terroristas. Tanto a leitura do livro quanto a escrita do texto tiveram um ar de urgência e “pertencimento” para mim, justamente por conta dos recentes eventos; pelas manifestações de ódio + desinformação nas redes sociais e pela rasteira cobertura “jornalística” da grande imprensa.
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Um Manifesto Póstumo do Diretor do Charlie Hebdo
Paris, França, 7 de janeiro de 2015. Em retaliação à publicação de inúmeras charges de Maomé e especialmente ao volume “Charia Hebdo” (edição 1011 do semanário Charlie Hebdo), um grupo ligado à Al-Qaeda cometeu um atentado terrorista à sede do Charlie Hebdo, deixando onze feridos e doze mortos, dentre eles, o jornalista e cartunista Stéphane Charbonnier (o Charb), diretor do jornal. Dois dias antes de morrer nesse ataque, Charb havia terminado de escrever um pequeno livro chamado Carta aos Escroques da Islamofobia que Fazem o Jogo dos Racistas, obra onde o autor discute a sua visão e a visão do CH a respeito da ideologia ligada às causas, faces e questões islâmicas; dos erros de interpretação e abordagem da mídia e da população sobre o tema; e dos tropeços cometidos pelas muitas esferas do Estado quando se trata de punir ou pronunciar-se a respeito de seus cidadãos, considerando suas motivações ideológicas e escolhas culturais.
Publicado em abril de 2015 na França, Carta… é uma instigante reflexão sobre o trabalho jornalístico e compressão social da causa muçulmana, algo que o autor começa problematizando já no primeiro capítulo, O Racismo Posto Fora de Moda Pela Islamofobia. De forma fluída, basicamente com um texto jornalístico despreocupado e quase desbocado, Charb discursa sobre o perigo do uso do termo “islamofobia” (medo do islamismo) em detrimento da verdadeira e importante vítima do caso — quando há caso –, o cidadão por trás da da religião, o muçulmano. Ao sepultar palavras como “racismo” e “xenofobia”, que definem e explicam melhor a atitude de algumas pessoas em relação a árabes e/ou muçulmanos, e substituí-las por “islamofobia”, termo que tende a ser genérico e acaba englobando todas as vertentes da religião islâmica (daí o perigo), entramos em uma seara onde o cidadão é esquecido ou minimizado ao passo que sua crença é defendida: “Deus colocado acima do fiel”, segundo o autor.
Cada capítulo do livro aprofunda complicações sociais de bastante peso no século XXI, e a obra atinge redutos do Partido Socialista Francês; da extrema direita católica; do judaísmo enquanto religião (o capítulo sobre isso é irônico, muito inteligente e honesto nas diferenciações e críticas às atitudes dos judeus em relação aos Palestinos, por exemplo); da mídia televisiva e impressa de grande alcance; das instituições, associações e pessoas que empreendem uma cruzada enraivecida contra a liberdade de expressão sob a justificativa de que estão defendendo os muçulmanos.
A obra é polêmica, mas não tanto quanto se esperava de um livro do diretor do Charlie Hebdo. Isso porque seu autor preocupa-se em exercer sua função de jornalista e trabalha com fatos amplamente conhecidos pela imprensa francesa e internacional, o que dá um amparo imediato ao que ele diz e defende, especialmente nos conceitos de liberdade criativa e de crítica às religiões, uma defesa do autor e de seu jornal que acabou chamando a atenção de extremistas islâmicos após a republicação das charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (setembro de 2005). Em março de 2006 o CH publicou o documento Manifesto: Juntos contra o Novo Totalitarismo, bem como as caricaturas do J-P. No ano seguinte, diversas instituições islâmicas moveram ações contra o semanário. Em 2011 a sede do CH foi incendiada. Em 2013 o site do semanário foi hackeado.Em 2015, o massacre aconteceu…
Essa série de confrontos de diversos lados da sociedade francesa contra o trabalho do jornal Charlie Hebdo certamente foi um impulso para a escrita do livro que, se tem algum problema de abordagem, ele está na infantilização ampla dos religiosos (o capítulo sobre a “cristofobia” / “catolicofobia” é maravilhoso, mas generaliza um pouco) e talvez na construção final para o texto — imagino que passaria por uma readequação caso o autor estivesse vivo quando de sua publicação –, no fechamento das ideias sobre a “islamofobia”, que merecia ser amarrado com o reconhecimento de que o uso do termo, apesar de perigoso e pouco indicado, dadas as implicações ligadas a ele, não está inteiramente subtraído de verdade.
É lícito fazer humor ou crítica com símbolos e personagens religiosos? O Estado deveria intervir nesse tipo de caso? A melhor maneira de não tornar “uma coisa dessas” [leia-se terrorismo] pior é “não falar sobre”? A liberdade de expressão como manifestação honesta e baseada em fatos, tem limites? Se sim, quais são eles? Estas são algumas perguntas que indiretamente este livro nos traz. Mesmo não concordando com todas as colocações do autor, o leitor certamente se identificará com a visão arguta de Charb a respeito da relação sociedade-e-religião e verá legitimidade na maior parte do livro, que serve como porta de entrada para um bem-vindo e necessário debate em nossos dias.
Carta aos Escroques da Islamofobia que Fazem o Jogo dos Racistas (Lettres aux escrocs de l’islamophobie qui font le jeu des racistes) — França, 2015
Autor: Charb (Stéphane Charbonnier)
Editora original: Les Échappés
No Brasil: Casa da Palavra, 2015
Tradução: Sara Spain
95 páginas