Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Coração de Leão

Crítica | Coração de Leão

por Luiz Santiago
382 views

estrelas 4

As ideologias dos partidos de extrema direita renasceram na Europa (e em grau um pouco menor, ao redor do mundo) nessa primeira década do século XXI. Impulsionados por um ideal patriotista e militarista revestido de racismo, xenofobia e preconceitos, os neonazistas e correlatos encontraram, nos anos 2010, o bode expiatório perfeito para justificar os temores de quem jamais leu um livro de História: o aumento progressivo dos imigrantes e refugiados em praticamente todos os países do Velho Continente e uma suposta “ameaça à família, à honra e à supremacia das nações brancas”. É a farsa da História dando as caras. E o cinema retratando-a como pode.

Coração de Leão (2013) embarca nesse universo neonazista fugindo dos lugares-comuns do gênero. Os conflitos político-ideológicos são colocados em pelo menos duas vertentes históricas verídicas e igualmente nos traços comportamentais dos personagens. E mesmo que nem todos sejam desenvolvidos como deveriam (um dos defeitos do filme), sua construção comporta o lado humano, a surpresa, o acaso que assalta a qualquer um e o coloca de frente para uma situação impensada até aquele momento. Esta é a história de Teppo (Peter Franzén), o ex-militar finlandês que integra um grupo de neonazistas e por acaso conhece uma mulher que tem um filho negro e muçulmano. É com base no choque de ideias e na adaptação dos dois lados que o filme de Dome Karukoski irá se manter.

Alguns espectadores reclamaram bastante sobre o roteiro ser “inverossímil”, que “um neonazista jamais agiria desse jeito”, que “apesar do entretenimento, a obra é mentirosa”. Mas creio que o que falta mesmo é um pouco mais de paciência na análise. Ao deixar a visão apressada da coisa, percebemos que o roteiro escrito por Aleksi Bardy marca bem duas fronteiras dramáticas, uma assumidamente fictícia, emotiva; e outra realista ou de integração do real à linha de entretenimento que ganha maior destaque na película. E isso não é uma coisa ruim e nem torna o filme inverossímil. Como citei no início, ele trata as questões fora dos chavões esperados e não tira dos personagens a possibilidade do “fator humano”, que sim, pode acontecer a qualquer um, independente de suas orientações políticas.

E esse critério é bastante explorado ao longo do filme, porque dois irmãos são colocados em cena, cada um mostrando uma faceta do que é ser neonazista. A diferença de idade e o vazio existencial de cada um — a parte psicológica e as incursões filosóficas desse filme, especialmente na construção de Teppo e Harri, dão uma boa e longa discussão — mostram ao espectador a possibilidade de ver níveis diferentes de aceitação e formas diferentes de lidar com o que é novo. [Spoilers!] Percebam que Harri se sente tão agredido e confuso, submerso, massacrado pela possibilidade de conviver com um garoto negro (e possivelmente gostar dele, como talvez já estivesse fazendo), que ele prefere sair de cena da maneira mais trágica possível, tendo fatores sociais e possivelmente de pulsões pouco aceitas por seu grupo de amigos [Spoilers!].

Ao longo da fita, alguns personagens ganham destaque e é nesse miolo e tempo de mudanças que o diretor se sente mais à vontade para experimentar um estilo de direção padronizado em dois blocos: dinâmico e com fotografia clara e sem filtro nas tomadas externas; e mais elegante e com difusão de luz, mesmo em diurnas, nas tomadas internas. O jogo entre público e privado e a camada de discussão sobre a convivência entre diferentes. Reparem que em dado momento Teppo e Rhamadhani se apelidam com algum afeto de “macaco preto” e “nazista fracassado”, o que é estranho para nós, mas não há animosidade na cena e nem o diretor ou o roteirista estão tratando formas de preconceito e racismo com luvas de pelica. Foi por isso que eu disse que o tema abordado aqui foge aos chavões do gênero e o público ganha bastante com esse tipo de abordagem crítica mas sem a ambição de documentar ou tornar a fita uma denúncia às claras. Antes de tudo, Coração de Leão é uma ficção. E das boas.

Enquanto alguns blocos o filme poderiam ser excluídos e outros tratados com maior agilidade, há partes no desenvolvimento que estão aceleradas demais, carecendo de melhor contexto, pausa para justificar ações e evitar ocorrências abruptas de violência, que embora não estejam jogadas — já que este é um dos subtemas do filme — estão aquém do cuidado que vemos na maior parte do roteiro. O desfecho da história não só nos deixa em um estranho estado de cumplicidade mas mostra que o caminho da remissão está aberto para todos. E sim, aí começa mais uma outra longa e bem vinda discussão. Afinal, além da diversão, é para isso que serve o cinema, não é mesmo?

  • Para discutir as questões do neonazismo em outro país da Europa leia a nossa crítica de Sangue Francês (2015).

Coração de Leão (Leijonasydän) — Finlândia, Suécia, 2013
Direção: Dome Karukoski
Roteiro: Aleksi Bardy
Elenco: Peter Franzén, Laura Birn, Jasper Pääkkönen, Yusufa Sidibeh, Jussi Vatanen, Timo Lavikainen, Pamela Tola, Mikko Neuvonen, Niko Vakkuri, Jani Toivola
Duração: 104 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais