O Incal Negro (1981) é o primeiro volume da série Incal, criada por Alejandro Jodorowsky (roteiro) e Moebius (arte). A trama deste primeiro livro é dividida em 5 capítulos, cada um com uma abordagem distinta para o que de fato está acontecendo na história e, principalmente, sobre o que é o Incal. Ou seja, falamos aqui de um volume curto que tem imediata indicação de sequência, mas que isoladamente apresenta uma introdução densa, complexa e muitíssimo bem realizada, introduzindo-nos de maneira enigmática ao Jodoverse, o universo de Jodorowsky nos quadrinhos do Incal.
A trama começa em Uma Noite no Anel Vermelho, quando somos apresentados ao detetive particular licenciado “Classe R” chamado John Difool. Ele está no Beco do Suicídio e é agredido por mascarados de um grupo chamado Amok, que está à procura do Incal. É em torno desse misterioso objeto que as coisas se estruturam e entre a descrença e o aprendizado da pior forma, o estranho protagonista tenta não ser morto. Em um resumo de gêneros, é como se lêssemos um motor dramático trazido dos filmes noir misturado com metafísica, sátira política e space opera, este último, algo que a excepcional arte de Moebius ilustra com um nível de detalhe, decadência e criatividade que nos faz passar o triplo do tempo em uma única página, só para observar todos os detalhes com o devido cuidado.
O peso da ficção científica posto em O Incal Negro está na gênese da parceria entre Jodorowsky e Moebius, iniciada no final de 1974, quando o primeiro liderava a produção de Duna, adaptação para o livro de Frank Herbert que, pelo enorme custo da produção (o filme teria Orson Welles e Salvador Dalí no elenco, além de música composta pelo Pink Floyd, dentre outros artistas), acabou sendo cancelada e retomada anos depois por Dino De Laurentiis, que a entregou a David Lynch. Do fracasso das filmagens de Duna restou a parceria entre Jodorowsky e Moebius, que combinaram de expandir as ideias que tiveram na ocasião para uma saga em um mundo ultra-tecnológico, moralmente questionável, cheio de contrastes estéticos (entre o luxo e o lixo) e com uma organização política e social surreais, para dizer o mínimo.
Não é difícil perceber que a jornada de John Difool e todo o bojo dramático do Incal segue os estágios do herói em O Herói de Mil Faces, do antropólogo Joseph Campbell. Essa jornada, inicialmente bem definida, ganha não só uma narrativa intricada e não necessariamente linear, mas também conceitos freudianos, jungianos, xamanistas e de outras ordens esotéricas, além de nomes vindos das cartas do tarô (como o do protagonista, “The Fool”) e elementos de física quântica.
Estágios da Jornada do Herói
Segue abaixo os estágios da jornada do herói, criados por Campbell.
- Partida, separação
- Mundo cotidiano
- Chamado à aventura
- Recusa do Chamado
- Ajuda Sobrenatural
- Travessia do Primeiro Limiar
- Barriga da baleia
- Descida, iniciação, penetração
- Estrada de Provas
- Encontro com a Deusa
- A Mulher como Tentação
- Sintonia com o Pai
- Apoteose
- A Grande Conquista
- Retorno
- Recusa do Retorno
- Voo Mágico
- Resgate de Dentro
- Travessia do Limiar
- Retorno
- Senhor de Dois mundos
- Liberdade para Viver
Se toda essa gama de ingredientes é trabalhada com maior profundidade nos volumes seguintes da saga, aqui em O Incal Negro, ela serve como porta de entrada do leitor para um mundo em colapso, para uma realidade em mudança constante. O roteiro jamais facilita. Quando dissemos “porta de entrada”, não falamos, exatamente, de “história de origem” ou algo parecido. Ao terminar O Incal Negro, o leitor tem uma quantidade absurda de perguntas e tantos nomes, lugares e coisas para digerir que é bem difícil não querer ler de novo para poder captar melhor o sentido da história e tudo o que ela nos apresenta.
E por mais que saibamos que foi Jodorowsky quem cuidou do roteiro da série, é mais que evidente que houve a mão de Moebius na condução de caminhos narrativos para a história. Veja, por exemplo, o andamento dos capítulos A Dança do Incal e Sua Alteza Suprema, ambos com uma estrutura que nos lembram os enigmas, atalhos e amplo leque de histórias que o desenhista/roteirista costumava usar em aventuras como Arzach (1975 – 1976), A Garagem Hermética (1976 – 1979) e em uma outra parceria dele com Jodorowsky, Os Olhos do Gato (1979).
Nos desenhos, Moebius faz uma grande mistura de concepção dos quadros e diagramação das páginas, com destaque para a fluidez interna. A história começa com belas perspetivas, cenários grandiosos e cores claras. Duas páginas depois, vemos tonalidades gerais mais escuras, seguidas nas páginas seguintes de tonalidades claras e assim por diante. Essas idas e vindas na paleta de cores é um recurso interessante para mostrar a descontinuidade do roteiro, além de ir plantando emoções diferentes (e um tanto incompatíveis entre si) por toda a história. Dos capítulos, A Dança do Incal é o mais “poluído”, com um número enorme de personagens novos e explosão de coadjuvantes. É o momento do volume em que passamos mais tempo observando a estrutura dos desenhos. Já nos blocos finais, Tecnociência e O Metabarão, a arte dá maior espaço para os cenários (com leves exceções, como no Covil de Amok), quadros mais “limpos” e alusões místicas que complementam o texto.
O Incal Negro é um início sensacional para uma importante saga na história dos quadrinhos. Ao fim, quando temos o link para O Incal Luminoso, percebemos que tudo o que lemos no primeiro volume foi a jornada para descobrir o outro lado da moeda, quando na verdade, acreditávamos ver a face original do objeto. Isso, ao invés de irritar o leitor, o faz sorrir de alegria para a sagacidade do texto. E se preocupar com o futuro da humanidade, dos mutantes, dos alienígenas, do Pássaro de Concreto, do Matador Cabeça de Lobo, dos Bergs e de toda a sorte de criaturas que povoam o insano e viciante Jodoverse.
- Conheça mais sobre o Universo do Incal aqui.
O Incal Negro (L’Incal Noir) — França, maio de 1981
No Brasil: Editora Devir, 2011 (Incal Integral)
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Arte: Moebius
48 páginas