A teoria do “Teatro da Crueldade”, concebida pelo poeta, dramaturgo e ator francês Antonin Artaud, na década de 1930, e fixada definitivamente com a publicação de O Teatro e Seu Duplo (1938), foi a base central de Fassbinder para escrever o roteiro de O Assado de Satã, o filme mais lisérgico, bizarro, estranho e anormal que ele assinou.
A obra centra-se na vida de Walter Kranz (Kurt Raab), um poeta anarquista que é cercado por pessoas completamente anormais, como ele. Há a esposa que fala aos berros e vai minguando no decorrer do filme; o irmão louco que tem fixação por moscas e tenta manter relações sexuais e familiares com elas; as amantes sadomasoquistas; o policial que deveria investigá-lo mas se torna uma espécie de nêmesis cômico, juntando-se a Kranz em toda a galhofa que parece ser o destino final da realidade dos personagens no filme.
A inspiração no Teatro da Crueldade aparece na tela da maneira mais clara possível. O diretor empreende uma crítica ao espetáculo — ele usa a escrita como forma metalinguística distanciada, como fizera com os melodramas, no período que durou de O Comerciante das Quatro Estações a Amor e Preconceito — mas também uma crítica dispersa à forma como a sociedade se organiza, preocupando-se sempre com o produto pronto, o fato dado, a realidade aparente e deixando passar o contexto e todas as situações que influenciaram a “manufatura” desta realidade, uma temática vista em outros dois filmes desta fase de reformulação conceitual do cineasta: A Viagem de Mãe Küster para o Céu (no cenário político) e Eu Só Quero Que Vocês me Amem (no cenário social).
Essas críticas, no entanto, são percebidas apenas em um ‘segundo momento’. De imediato, o público está mergulhado em nonsense, em um tipo de humor ácido e amargo que muitas vezes não possui graça nenhuma, não por ter piada ruim, mas porque o riso que deveria ser provocado aí encontra as células morais do espectador, fazendo de uma ou outra sequência uma espécie de situação exagerada cuja intenção é mostrar algo sério demais sob um ponto de vista dadaísta e inumano, para dizer o mínimo.
A submissão da mulher, a “distração” do meio policial (aludindo a O Amor é Mais Frio que a Morte), o parasitismo social, o desprezo dentro do núcleo familiar, o conflito de gerações elevado ao máximo do absurdo… Todos esses aspectos, executados por um elenco exemplar (com destaque para Kurt Raab, no papel de Kranz e a sempre excelente Margit Carstensen, no papel de Andrée) tornam o filme ainda mais vívido e estranhamente cativante.
O espectador não irá encontrar em O Assado de Satã o sempre comum escrúpulo estético de Fassbinder. A composição do longa é bastante crua quando se trata de cores, iluminação e direção de arte, mas firme no ritmo da edição — adotando o mesmo padrão narrativo visto em Eu Só Quero Que Vocês me Amem — e os sempre preciosos movimentos de câmera de Michael Ballhaus, que co-assina a fotografia com Jürgen Jürges, de O Medo Consome a Alma. A crueza estética, no entanto, não só caiu muito bem à proposta geral da obra como também intensificou a aparência teatral de determinadas cenas, como as que Kranz personifica o poeta Stefan George ou os maneirismos que ele mesmo assume em seu cotidiano (ele e todos ao seu redor), seja nas tentativas de manter algum contato homossexual, seja na forma como trata a esposa, o irmão e as amantes.
Há um enorme pano de fundo niilista em O Assado de Satã, a começar do título. O espectador, no entanto, deve buscar, em meio a tanta acidez cômica ou desesperança de existência, algo que vá além da aparência, não tentando dar significado a tudo, mas procurando entender o por quê de tais elementos terem sido agrupados em um mesmo diabólico assado, como uma espécie de olhar divino sobre a obra de Mefistófeles no mundo, onde regras de normalidade e bom-mocismo simplesmente não existem.
O Assado de Satã (Satansbraten) — Alemanha Ocidental, 1976
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: Kurt Raab, Margit Carstensen, Helen Vita, Volker Spengler, Ingrid Caven, Y Sa Lo, Ulli Lommel, Armin Meier, Katherina Buchhammer, Vitus Zeplichal, Brigitte Mira, Hannes Kaetner, Peter Chatel
Duração: 112 min.