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Crítica | A Encruzilhada das Bestas Humanas

por Luiz Santiago
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Talvez o caso mais antigo da dramaturgia romântica seja o do amor impedido de se realizar pela incompreensão ou repúdio dos que estão ao redor do casal-alvo, uma postura geralmente assumida pela família ou pela sociedade, setores que quase sempre clamam para si o papel de algoz do prazer alheio.

Em A Encruzilhada das Bestas Humanas, um filme feito para a TV alemã, Fassbinder problematiza a relação trágica do romance juntamente com o sexo e a morte, adicionando elementos cristãos, cobrando um engajamento moral do espectador e criando nuances melodramáticas revestidas de normas clássicas (guardadas as devidas proporções, algo à la Chamas Que Não se Apagam, de Douglas Sirk), atitudes que fazem deste longa pouco conhecido e bastante subestimado um de seus filmes mais interessantes em termos narrativos e formais, especialmente nos setores de direção e montagem.

O roteiro, escrito pelo próprio Fassbinder e baseado na peça de Franz-Xaver Kroetz, nos traz um caso bastante problemático de pedofilia e disfunção familiar. Adotando um ritmo parecido com o de seus longas sobre gângsters, especialmente O Amor é Mais Frio que a Morte (1969) e Os Deuses da Peste (1970), o diretor conduz “o crime e a investigação” juntos, mesclando situações da vida dos envolvidos com o seu objeto de pecado ou culpa, como fizera em O Comerciante das Quatro Estações, um artifício narrativo que ajudou a engajar o público na história da maneira mais improvável possível: comprando os dois lados e relativizando-os até o final da projeção.

A protagonista, vivida de maneira estranhamente natural por Eva Mattes (então com 19 anos), é uma adolescente de 14 anos que flerta com um rapaz de 19 (Harry Baer, em ótima interpretação) e acaba perdendo a virgindade com ele. A acusação para o rapaz virá logo em seguida, assim como a negação dos pais de Hanni em aceitar que a filha pudesse ter topado transar com alguém que mal conhecia. O conflito de gerações não é unicamente dos personagens mas também da plateia, afinal, nos vemos às voltas com “sugestões” de tratamento dos pais para com a garota, coisas que vão do castigo físico ao uso da autoridade paterna/materna e ponto final.

Mas Fassbinder não deixa as coisas assim tão simples. Ele nos prepara para digerir as várias relações metafóricas e simbólicas que arranja no decorrer da fita, desde os muitos ícones cristãos espalhados pelos cenários e usado como colar por Franz, até a comparação entre o ato sexual e o abate das galinhas no matadouro onde Franz trabalha. A relação aparece em dois momentos importantes para a definição da personalidade do rapaz e é neste palanque de latências que o diretor expõe as aparências iniciais que tivemos dele, da família, dos amigos e de Hanni. Em seguida, com as novas cores dada para cada um, somos forçados a mudar de opinião ou ao menos acrescentar um ponto negativo a quem até então víamos como “dono da verdade”.

A crueza de A Encruzilhada das Bestas Humanas é reafirmada pelo teor social e burocrático que ronda os protagonistas e também pelas regras familiares que impedem que o namoro entre os pombinhos aconteça. O problema da idade opõe à proibição que pode ser fatal — e de fato o é, como comprovamos ao término do filme.

Jovens de uma geração marcada pela incapacidade de amar de verdade (vide a tese plantada pelo diretor lá em O Machão), Hanni e Franz, ao mesmo tempo que “desafiam” esses “novos tempos” dão a eles todas as armas necessárias para serem atacados. O projeto familiar e o peso financeiro aparecem ao lado da imaturidade do casal, onde também se adiciona o ódio guardado por muito tempo (no caso de Hani em relação ao pai) e um pouco de patologia de caráter edípico para completar. O resultado? Um cruel e desesperançoso final, com um dos destinos mais patéticos e realistas já filmados por Fassbinder em termos de relações amorosas polêmicas. É como se os protagonistas fossem estúpidos o bastante para se trancarem em suas próprias celas por não terem sabido escolher, antes da catástrofe, para que lado seguirem e fugir do problema que certamente viria. Uma verdadeira encruzilhada de bestas humanas.

A Encruzilhada das Bestas Humanas (Wildwechsel) – Alemanha Ocidental, 1973
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder (baseado na peça de Franz-Xaver Kroetz).
Elenco: Harry Baer, Marquard Bohm, Rudolf Waldemar Brem, Ruth Drexel, El Hedi ben Salem, Irm Hermann, Klaus Löwitsch, Eva Mattes, Kurt Raab, Karl Scheydt, Hanna Schygulla, Jörg von Liebenfelß
Duração: 102 min.

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