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É, nunca subestime Alan Moore. Mesmo com Século: 1910 sendo um começo claudicante para o terceiro volume de A Liga Extraordinária, ele conseguiu reerguer a obra com Século: 1969. E, finalmente, na terceira e última parte da saga, Século: 2009, ele solta todos os freios e qualquer senso de pudor que ainda tivesse, e põe abaixo a cultura pop atual, esmigalhando-a debaixo de canetadas certeiras, ácidas e polêmicas. Lendo esse volume, consegui visualizar muito facilmente o veneno escorrendo pelos lábios do autor e consegui me deliciar com cada momento.
Afinal de contas, estamos no presente agora. Começamos na era eduardiana na primeira parte ainda sem saber que caminho a história seguiria. Na segunda, partimos para os anos 60, do movimento hippie, com muito sexo, drogas e rock ‘n roll. Em Século: 2009, enxergamos exatamente aquilo que Moore acha do presente, uma visão claramente pessimista do mundo em geral e da Inglaterra em particular, com especial desprezo para algo que podemos chamar de “banalização da cultura”. Essa terceira parte é literalmente isso, do começo ao fim: uma espécie de canção finalista e apocalíptica para um mundo que não mais tem cura, não mais merece sobreviver. Afinal, logo de início, somos informados que o anticristo que Mina Murray, Allan Quatermain e Orlando perseguiam finalmente nasceu e está à solta nesse mundo. Podemos ler a história de várias maneiras, mas uma coisa é absolutamente certa: Moore considera de verdade que estamos no fim, que o anticristo está mesmo no meio de nós, mas claro que não o anticristo de conotação bíblica e sim o que ele representa para a decadência do mundo, de valores outrora existentes. É uma canção fúnebre extremamente divertida de se ouvir, uma ária negra em quadrinhos.
E quando disse que Alan Moore soltou seus freios, isso também vale para sua discrição. Um dos elementos que sempre caracterizou os volumes d’A Liga Extraordinária era a forma como o autor, em parceria com Kevin O’Neill, salpicava ao longo das histórias dezenas, senão centenas de referências históricas e literárias. Mas sempre sem escancará-las, sem torná-las óbvias, exigindo erudição do leitor ou, no mínimo, uma boa pesquisa (isso para quem deseja, claro, ultrapassar o nível mais rasteiro de leitura de uma obra de Moore). Cada nome de rua, de pessoa, cada quadro, cada estátua, cada citação, cada detalhes era parte de um todo maior, sempre com camadas e mais camadas de significados.
Essa tendência continuou em 1910 (na verdade, Moore até errou a mão nessa parte) e um pouco menos em 1969, mas, em 2009, o autor resolveu deixar tudo muito às claras, mesmo considerando sua dificuldade jurídica de citar e usar elementos literários recentes, por questões envolvendo direitos autorais. O que antes era uma citação discreta, quase invisível, agora são páginas e mais páginas deixando muito claro, mas muito claro mesmo que personagem pop ele está massacrando e chamando de anticristo. Não vou revelar aqui quem é, mas basta dizer que ele já deixa a semente do que viria a descortinar aqui, em Século: 1969. O que lá era uma citação longa, mas engraçada e que achei completamente sem consequências, é desdobrada em uma sensacional sequência de páginas em que vemos cada detalhe – ele vai nas minúcias – do universo do amado personagem ser arreganhado na nossa frente para quem quiser ver.
E interpreto isso de duas maneiras. E nenhuma delas me levou a crer que Alan Moore está querendo atacar diretamente os fãs da obra que ele fulmina. Minha primeira interpretação é que Moore usou essa obra, pois ela é um ícone da cultura pop atual, com legiões e mais legiões de seguidores, pois ela representa (vejam bem, “representa”) tudo aquilo que ele considera de errado no mundo, ou seja, a pasteurização da cultura, a falta de inventividade e mesmo o fandom alucinado que defende com unhas e dentes seus ídolos reais e fictícios como se a vida deles dependesse disso. O segundo raciocínio, que é complementar, é que, ao fazer isso, Moore quer nos acordar, chamar atenção para o problema, uma espécie de serviço de despertador que ele mesmo sabe e deixa claro que chegou tarde demais. Ao mesmo tempo, ao escancarar ao ponto do óbvio ululante sua referência, ele quer nos passar a mensagem de que, hoje, para que alguém aprecie alguma coisa, tudo tem que ser muito bem explicado, em seus mínimos detalhes, o que por si só já mata toda a criação intelectual (é aquela velha história de que, se temos que explicar uma piada, então já era).
Claro que esse ícone da cultura pop não é seu único alvo. Ele ainda usa referências às séries de TV Doctor Who, Tracey Jordan (30 Rock), West Wing. Entourage e 24 Horas, à marca de roupa FCUK (com “CNUT” ), a Roger Moore e Daniel Craig como 007 e mais um gigantesco número de outras, como instituições de caridade e suas próprias obras anteriores, como Black Dossier e seu famoso óculos 3D. Moore (o Alan, não o Roger) até se insere na narrativa como Prospero, o mentor de Orlando, com sua longa barba branca e roupa de bruxo. Mas nenhuma das citações é tão destruidora como a principal que mencionei – sem spoilers – acima.
E, mesmo dentro da “banalização da cultura pop”, Moore ainda brinca com o deus ex machina, fazendo um final que depende absurdamente desse artifício normalmente odioso. O que ninguém espera exatamente é a literalidade com que ele usa o termo e, mais especificamente, quem é o deus de deus ex machina. A realização desse momento me fez ler as páginas umas cinco vezes seguidas, com um enorme sorriso no rosto.
Ao trabalhar esses elementos pop com tantos detalhes, Moore acaba abrindo espaço para Kevin O’Neill fazer o que até agora, no terceiro volume, não havia conseguido fazer: uma arte que surpreende, com grandes e belíssimos quadros reconstruindo aquilo que o imaginário popular pensa de ser de um jeito, mas que, na cabeça contorcida do autor britânico, é de outro jeito bem mais macabro e sensacional. E é visível o grau de diversão de O’Neill ao disfarçar – sem esconder – as referências, pois, assim como Moore soltou seus freios, ele fez o mesmo (e juro que não sei como os dois não foram alvo de ações judiciais pelo uso de imagens de atores famosos!).
Em poucas palavras, Século: 2009 não só é um final triunfal para o terceiro volume d”A Liga como, também, consegue levantar o resultado final, fazendo-nos esquecer o fraco começo (bem, fraco para os padrões Moore-O’Neillnianos, claro). Leitura obrigatória!
A Liga Extraordinária – Século: 2009 (The League of Extraordinary Gentlemen – Century: 2009)
Roteiro: Alan Moore
Arte: Kevin O’Neill
Cores: Benedict Dimagmaliw
Letras: Bill Oakley
Publicação original: Top Shelf Productions (EUA) e Knockabout Comics (Reino Unido), em junho de 2012 (uma edição)
Publicação no Brasil: Devir, novembro de 2012
Páginas: 96 (edição brasileira)