obs: Crítica originalmente escrita em 06 de abril de 2010.
A Dreamworks é um dos poucos estúdios que efetivamente mergulhou de cabeça nos desenhos de computação gráfica depois do embalo inicial da Pixar. A Disney tentou algumas vezes, para resultados meio cambaleantes, vide O Galinho Chicken Little e Bolt: Supercão e a Sony basicamente fez o péssimo Tá Chovendo Hamburguer. A Fox se deu bem na bilheteria com sua trilogia A Era do Gelo, apesar de, a cada filme, a qualidade ter caído, culminando com o fraquíssimo Era do Gelo 3.
A Dreamworks, por sua vez, começou muito bem, com o excelente Shrek. O filme, ganhador do Oscar de melhor filme animado de 2002, batendo o excelente Monstros S.A. da Pixar (se foi justo não sei, pois os dois filmes talvez sejam igualmente bons), tinha uma qualidade toda especial que era derrubar com todas as convenções do gênero “desenho animado”. O herói era um monstro bem feio que só pensa em si próprio, odeia amizades e somente por interesse próprio resolve salvar a princesa que, no final, se revela também uma ogra. Além disso, suas gags visuais e piadas diretas em relação à Disney eram impagáveis. No entanto, a Dreamworks, vendo cifrões à sua frente, fez três continuações abaixo da crítica. Também vendo cifrões, a Dreamworks partiu para Madagascar que é uma franquia que sobrevive apenas com a mesma piada o tempo todo. Depois vieram besteiras como Bee Movie – A História de uma Abelha, Por Água Abaixo, Os Sem-Floresta e O Espanta Tubarões (não nessa ordem) que são filmes completamente esquecíveis.
Kung-Fu Panda, porém, me deu esperanças. Apesar de não ser particularmente especial, o filme é muito bem feito e tem piadas ótimas. No entanto, talvez o ponto alto da empresa, igualando o feito de Shrek (o primeiro, claro) em termos de qualidade e quebra de paradigmas, seja mesmo, porém, Como Treinar Seu Dragão.
O desenho, baseado em série de livros homônima escrita por Cressida Cowell, conta a história de Soluço, o filho de um chefe viking de uma aldeia localizada em um ilha no meio de nada com coisa nenhuma. O garoto é fracote e desajeitado, só desapontando o pai, um grande matador de dragões, praga que assola sua aldeia. Em determinado momento, Soluço consegue acertar um dragão misterioso que ninguém tinha visto antes e, muito secretamente, passa a ser seu amigo. Essa descrição, tenho certeza, não faz jus ao que é o filme. Além da animação excelente, que não deixa nada a desejar à qualidade da Pixar em sua época mais áurea (pronto, eu disse…), o roteiro representa, como mencionei, uma quebra de paradigmas.
Não vemos a história de um garoto crescendo à sombra do pai para se tornar, depois, um homem à imagem do pai. Vemos um menino que, como todos, quer mesmo ser como o pai um dia, mas que tem sua própria e peculiar personalidade. Aos poucos, vai vendo que a maneira do pai – e de seus conterrâneos – agir, talvez não seja a mais correta. No lugar de se curvar aos adultos, ele acaba impondo sua vontade e o final é longe de ser água com açúcar. Sim, é uma fita de superação, mas não superação sem consequências. Nesses aspectos, ele lembra um pouco Shrek, mas consegue ser bem mais sutil que o filme do ogro verde. Soluço e seu dragão demonstram que nem tudo que está estabelecido como verdade é verdade, por mais imutável que a situação pareça. Ponto para a Dreamworks que não procura fazer uma história que agrada todo tempo, mas sim uma que consegue, com seus diálogos bem construídos e uma dinâmica excelente entre os personagens, fomentar discussões sobre aceitação, família, preconceito e o valor da amizade. Sim, esses são elementos costumeiramente presentes em desenhos, mas a abordagem, aqui, é dinâmica e direta, sem rodeios e sem qualquer verniz.
Como também já disse, a animação é de primeiro nível. Os designs dos personagens humanos, um pouco para o lado cartunesco, foram, também, escolhas certeiras. Foi como se os desenhistas resolvessem ressaltar – e exagerar – as qualidades e defeitos de cada um dos personagens, mas sem criar necessariamente clichês ambulantes. No entanto, o que realmente enche os olhos são mesmo os dragões. Não vemos nada convencional. Há várias espécies, cada uma bem característica e cada uma desenhada de maneira extremamente original. O próprio dragão que se torna amigo de Soluço, Banguela, é um exemplo disso: todo mundo esperaria um lagarto verde enorme, com dentes afiados e língua bipartida. Soluço, muito ao contrário, parece ter pele sedosa (apesar de cheia de escamas quase invisíveis) e preta, além de ser, claro, banguela, pelo menos na maior parte do tempo. Além disso, age como um cachorrinho. Os outros dragões são igualmente originais, valendo destaque para os gordinhos, que são especialmente engraçados.
Enfim um desenho para competir com a qualidade da Pixar. Não estou dizendo que a Dreamworks chegou lá mas, se continuar por esse caminho, vai acabar chegando, ainda que sinceramente duvide que esse caminho seja efetivamente trilhado.
E o 3D? – vocês vão me perguntar. Bom, para dizer a verdade, cansei de filmes 3D, mas a completa falta de escolha me obrigou a assistir Como Treinar o Seu Dragão dessa maneira e, no final das contas, apesar dessa tecnologia ser fundamentalmente desnecessária, o 3D não atrapalha a experiência, especialmente nas sequências de voo.
Como Treinar o Seu Dragão (How to Train Your Dragon, EUA – 2010)
Direção: Dean deBlois, Chris Sanders
Roteiro: William Davies, Dean DeBlois, Chris Sanders (baseado em obra de Cressida Cowell)
Elenco: Jay Baruchel, Gerard Butler, Craig Ferguson, America Ferrera, Johah Hill, Christopher Mintz-Plasse, T.J. Miller, Kristen Wiig, Robin Atkin Downes, Philip McGrade, Kieron Elliott, Ashley Jensen
Duração: 98 min.