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Crítica | Asterix entre os Pictos

por Ritter Fan
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O show deve continuar! E é verdade. René Goscinny faleceu prematuramente em 1977 depois de escrever nada menos do que 23 álbuns de Asterix e Obelix em 18 anos e ainda deixando mais um ainda a publicar (Asterix entre os Belgas, lançado em 1979) e milhões de fãs órfãos dos irredutíveis gauleses. Seu parceiro Albert Uderzo, responsável pelos desenhos, tomou a acertada e corajosa decisão de assumir para si também os roteiros, continuando a produzir álbuns intermitentemente entre 1980 e 2005 (foram apenas mais 10, contando uma compilação de histórias curtas, muitas delas escritas por Goscinny e um álbum especial de aniversário de 50 anos de sua co-criação) sem, porém, jamais chegar próximo ao nível de Goscinny. Mas tentar era preciso e não se pode dizer que Uderzo não arregaçou as mangas o máximo que pode.

Mas o planejamento da sucessão era necessário e, mesmo que Uderzo tenha chegado a dizer que Asterix e Obelix “morreriam” com ele e mesmo que o resultado de sua mudança de ideia tenha sido uma briga de Uderzo com sua própria filha Sylvie em 2009 sobre os direitos sobre sua criação, as cotas da editora Les Éditions Albert René que criara e, claro, quem seguiria com a tocha acesa continuando o legado, o futuro sem Uderzo acabou alinhavado. Com o apoio da filha de Goscinny e da gigantesca editora francesa Hachette, que comprara sua participação da Albert René, Uderzo, então com 84 anos, elegeu, em 2011, ano em que se comemorou nada menos do que a publicação de 350 milhões de exemplares de Asterix pelo mundo, Jean-Yves Ferri para escrever o 35º álbum da série. Para a arte, o desenhista inicialmente escolhido foi Frédéric Mébarki, responsável por trabalhar com material derivado da série para promoções, mas ele acabou não podendo assumir o compromisso, com Didier Conrad, então, assumindo a missão.

O resultado inicial foi Asterix entre os Pictos. Em termos de arte, a estratégia é igual à de Mauricio de Souza com sua Turma da Mônica pré-Graphic MSP: zero de liberdade. Conrad teve que seguir os mandamentos de Uderzo e o resultado são traços iguais aos do criador. Faz sentido comercial, considerando que, como primeiro passo completamente fora do ninho, era melhor não arriscar. No entanto, fica aquele gostinho das possibilidades de um traço novo para os loucos gauleses e não os que já nos acostumamos a ver desde o nascedouro da turma. Só para se ter uma ideia, Conrad desenhou diversas obras para a famosa revista Spirou, mostrando grande capacidade em trabalhar faces e paisagens.  De toda forma, o trabalho é eficiente como os de Uderzo, mantendo o ar familiar que era o objetivo desde o começo, talvez com um cuidado maior nos detalhes de segundo e terceiro planos, mas nada muito sensível.

No quesito história, no melhor estilo do clássico Asterix entre os Bretões, Jean-Yves Ferri coloca Asterix e seu inseparável amigo Obelix na Escócia – ou na Caledônia, como era conhecida a região na época – entre as tribos guerreiras que formavam o povo picto, que viviam no leste e norte do que hoje é o país. E o que significa “no melhor estilo”? Ora, o que vemos é tudo que o imaginário popular determina que os escoceses fazem todos os dias, só que transplantados para o passado. Assim, como todo escocês anda de saia (kilt) então toma kilts nos personagens, inclusive nos próprios gauleses que acham Mac Olosso congelado e as mulheres ficam enlouquecidas com a moda, reproduzindo-a para seus maridos, para desespero deles. E, é claro, todo escocês é ruivo, arremessa toras de madeira, tem nomes que começam com Mac (ou Mc), são tatuados (lembram de Coração Valente?), vivem em clãs rivais e, por último, têm como bicho de estimação um dinossauro (ou, segundo Obelix, uma lontra gigante) em um lago, digo, loch.

Assim, Ferri insere todos os estereótipos escoceses dentro da estrutura narrativa de forma tão natural quanto Goscinny fazia há muitos anos e é bom ver essa forma voltar. Mesmo assim, talvez para não se aventurar muito, Ferri toma certas precauções que fazem com que a história perca seu ritmo a partir da metade, depois que Asterix e Obelix partem para devolver o descongelado Mac Olosso para seu clã. Logo que passa o bombardeio inicial de situações inusitadas, a história começa a descambar para o óbvio e o vilão, Mac Abro, não chega a ser memorável o suficiente. Mac Olosso, uma espécie de Obelix com mais músculos, consegue ser interessante, pois um problema mal explicado com seu congelamento e descongelamento o faz ter tiques neurológicos (isso sou eu explicando em termos mais sérios o que li, claro) e a cada frase que fala, ele insere letras de músicas clássicas em inglês, incluindo The Beatles. O mesmo vale para o simpático Afnor, o dinossauro amigo do clã de Mac Olosso, uma espécie de Ideiafix gigante.

Mas Ferri cai em armadilhas que estão também muito presentes nos textos de Uderzo. Falta unicidade narrativa, algo que começa a ficar evidente quando um recenseador romano chega na aldeia sem que ele tenha qualquer função narrativa maior do que apenas ocupar alguns quadros de algumas páginas. Da mesma forma, a aventura é episódica, não muito fluida e se vale de saídas fáceis demais para os heróis.

No Brasil, o trabalho de tradução ficou ao encargo de Gilson Dimenstein Koatz e ele se desdobra para fazer o melhor que pode em termos de criação de nomes engraçados que começam com “Mac” e na tradução das diversas brincadeiras com palavras, marcas registradas do humor de Goscinny e Uderzo. Acertadamente, ele manteve as músicas no original inglês (elas são em inglês mesmo na obra em francês), permitindo a imediata identificação do público.

Uderzo acertou em passar a tocha adiante, mas Asterix entre os Pictos ainda é uma obra acanhada, algo natural diante da enorme responsabilidade sobre os ombros de Ferri que, claro, sofreu pressão direta do co-criador original que somente viria a falecer em 2020. O álbum certamente é um bom recomeço para as aventuras de Asterix e Obelix, mas a qualidade do legado de Goscinny ainda está longe de ser alcançada.

  • Crítica originalmente publicada em 19 de novembro de 2013. Revista e atualizada para republicação em 19 de novembro de 2020, como parte da versão final do Especial Asterix no site.

Asterix entre os Pictos (Astérix chez les Pictes, França – 2013)
Roteiro: Jean-Yves Ferri (baseado em criação de René Goscinny e Albert Uderzo)
Arte: Didier Conrad
Editora original: Les Éditions Albert René
Editora no Brasil: Editora Record
Páginas: 48

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