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Crítica | Maridos e Esposas

por Luiz Santiago
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Dez anos depois de dirigir o seu primeiro drama, Woody Allen reafirmou uma linha interessantíssima de obras [“neo”]pessimistas e [“neo”]analíticas em sua filmografia. Nelas, se havia humor, ele surgia em par com reflexões cada vez mais incômodas, além de culpas e crimes. Essa fase, que foi de A Outra (1988) a Desconstruindo Harry (1997), possuiu uma influência ainda mais forte da instituição familiar, de questionamentos sobre as relações amorosas duradouras e sobre a inadequação das pessoas às realidades das quais lutam sem sucesso para se livrar (temas espalhados por toda a filmografia do diretor, mas que nesse momento ganham intensidade máxima). A imagem social de uma vida estável com filhos, casamento e religião passou a ser a linha de frente do ataque cinematográfico de Allen, que mesmo usando de motivos cômicos ou de outros gêneros como em Um Misterioso Assassinato em Manhattan, Tiros na Broadway e Todos Dizem Eu Te Amo, trazia uma visão um pouco perturbada para a obra em questão.

Maridos e Esposas (1992) é o ponto mais crítico da carreira de Woody Allen e, consequentemente, o seu filme mais autobiográfico em relação à vida conjugal. Embora tenha sido escrito dois anos antes de sua polêmica e escandalosa separação com a atriz Mia Farrow (processo iniciado durante as filmagens), Maridos e Esposas é visivelmente um exercício de sublimação e traz indicações disso em seu roteiro. Por ser “documentário amador”, o filme elege a plateia como confidente das personagens e revela suas sessões de análise para a câmera. Um mar de culpas assumidas e desejos reprimidos são as constantes do filme. O argumento final ganhou um tratamento que exagerava ou aludia às questões matrimoniais do próprio diretor. A vida inspirou a arte e a arte melhorou a vida, porque Maridos e Esposas é, sem dúvidas, um dos mais interessantes filmes que Woody Allen já dirigiu.

Em sua particularidade, a história já é conhecida de outros roteiros do cineasta, mas como em um outro caminho, a ciranda de relações amorosas aqui não tem um ar cômico e nem é filmada com beleza técnica ou estética. A crônica de dois casais amigos que entram em um jogo de separação, reatamento e outras relações é propositalmente filmada do modo mais amador possível. A câmera nunca está fixa, a fotografia é inconstante, há ângulos descentralizados, tomadas fora de foco, não há trilha sonora, a não ser a música de abertura e fechamento (What is this thing called love?) e a edição é abrupta e nada convencional. Não apenas em seu conteúdo mas também na forma, Maridos e Esposas revela-se uma crise em película.

É possível viver (e principalmente, envelhecer) sozinho? Essa questão parece ser o impulso inicial do filme, e a base para o diretor construir os sentimentos individuais de cada um dos personagens em cena. Em dado momento, a discussão sobre o que é estar solteiro ou casado alcança um patamar existencialista e mesmo cada ator expondo o que pensa a respeito, o conceito fica aberto para o espectador dar a sua própria opinião. Percebemos então a tentativa de relacionar as questões internas da obra com as possíveis similaridades do outro lado da tela, tarefa que tornou o filme muito “acessível” ao espectador.

Fazer um filme “amador por opção”, segundo declarações do próprio diretor, foi também um teste das possibilidades técnico-digitais que surgiam no início da década de 1990. Baixo orçamento e câmera na mão (no melhor estilo do cinema-verdade) tornaram-se paliativos artísticos de um cinema que então se popularizava, o cinema que optava por imagens de baixa qualidade para sugerir um forte realismo e emplacar a adesão da plateia como integrante da história. Maridos e Esposas usa desse realismo técnico para “invadir” a privacidade dos espaços reservados às brigas e desabafos tornando tão normais as complexas relações amorosas que elas geram no espectador uma visão quase imediata sobre o tema e daí surge a ironia do enredo e o “efeito do cotidiano patético” pretendido pelo diretor.

Uma reflexão sobre casamentos fracassados e personalidades neuróticas pode não ser algo muito agradável de se ver, especialmente se a forma do filme acompanha o caos do conteúdo — o que é o caso –, mas Woody Allen compreende bem as regras do jogo de cena, narração e continuidade temática, o que deixa o filme instigante todo o tempo. A trama amadurece sem perder o viço e ao final é muitas vezes mais apaixonante que o início, embora deprimente, se analisarmos o rumo das coisas como um ciclo vicioso.

Particularmente gosto de todos os trabalhos do diretor de fotografia Carlo Di Palma em parceria com Woody Allen, então só me resta citar a linha de criação imagética que o italiano usou nessa película. A câmera na mão serviu de impulso psicológico (ao lado da montagem de de Susan E. Morse, um tipo genial de “continuidade picotada” que ela levaria até a sua última parceria com Allen em Celebridades), trazendo as inquietações internas para a mobilidade nervosa da lente, sempre indecisa em que ponto do cenário se estabelecer. Mesmo nas cenas externas ou diurnas a fotografia é escura, como se a opressão das personagens viesse de todos os lados ou como se o olhar viciado delas pintasse de tons invernais todo o cenário. A alternância de espaços cênicos e o jogo de cores (figurinos e sets), terminam por enriquecer ainda mais essa gama de indicações estético-psicológicas contidas na obra.

Maridos e Esposas arrecadou diversos prêmios, além de receber, dentre outras, duas indicações ao Oscar, uma ao César e outra para o Globo de Ouro. Trata-se de uma pequena pérola de Woody Allen — talvez formalista demais para gostos mais idiossincráticos — incrustada na sua grande caverna de preciosidades cinematográficas. É um filme para ser visto sem pressa e definitivamente mais de uma vez. Um filme que gira a roda do amor e deixa a fortuna por conta do acaso.

Maridos e Esposas (Husbands and Wives, EUA, 1992)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Mia Farrow, Judy Davis, Sydney Pollack, Juliette Lewis, Liam Neeson, Lysette Anthony
Duração: 108 min.

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