Quanto mais exigente for um artista, mais elementos estéticos fixos serão observados em sua obra ao longo dos anos, algo que em arte chamamos de “estilo” ou “marca” ou “assinatura” pessoais. Ao contrário do que muita gente pensa, um estilo recorrente não engessa o artista, muito pelo contrário. Consideremos aqui as artes audiovisuais como nosso foco de análise, já que desembocaremos no cinema de Wong Kar Wai em seguida. Quando você assiste a um filme de diretores que possuem um dado estilo de fazer cinema, você sabe que vai encontrar determinadas cenas, personagens, tipo de música, fotografia, diálogos, violência estilizada; elementos recorrentes adotados por esses diretores que são reinventados a cada novo filme e aplicados em um contexto diferente, sob nova ótica, novas cores, novo tempo e intenção final. O estilo, no cinema, é um misto de identidade visual e narrativa, elementos que obrigatoriamente se complementam e se aprimoram com o tempo.
Ao vermos um filme de Wong Kar Wai, sabemos de antemão que haverá uma excelente trilha sonora, uma fotografia pontualmente bem trabalhada, belíssima direção de arte e figurinos, narrativa cíclica, história com trama central ou subtrama contendo um amor frustrado ou decepções e, por fim, algum elemento histórico, social, urbano ou ideológico como plano de fundo. Esses ingredientes podem ser vistos de alguma forma em todos os filmes do diretor, e no que diz respeito a O Grande Mestre, numa roupagem visualmente impecável, mas narrativamente imperfeita.
O filme é a cinebiografia de Yip Man, notável mestre do Kung Fu e treinador de Bruce Lee, que inicialmente era quem seria biografado. Durante a pesquisa e co-escrita do roteiro, Kar Wai achou que seria mais relevante abordar a vida do mestre à do discípulo, mesmo já havendo alguns filmes a respeito da vida de Yip Man. Todavia, sua visão não seria a de um acompanhamento rígido da jornada do lutador. Como já fizera em Cinzas do Passado Redux (1994), ele teve como objetivo trazer a luta (nesse caso, o kung fu) e a sociedade daquele momento como eventos de grande importância no roteiro, pincelando aí alguns fatos biográficos com destaque para a sempre malfadada história de amor. Mas talvez seja nesse ponto que o roteiro do filme tropeça e embora a direção de Kar Wai seja impecável do início ao fim, a reta final da película é afetada por esse passo amoroso em falso.
Embora entendamos que os filmes do diretor possuam uma sequência cíclica de ventos, geralmente temos um foco principal e um objetivo “X” a ser alcançado com a trama. No caso de O Grande Mestre, há intenções demais, bifurcações demais e isso se reflete em algumas decisões aceleradas para colocar um ponto final no texto; e um discurso quase anti-climático no epílogo. Não se trata de algo despropositado, mas se compararmos com a força do roteiro em todo o restante da projeção, temos nessas últimas sequências uma queda considerável de relevância e, infelizmente, contraditória à vida de Yip Man. Ao trazer o amor em desalento, a História da China em praticamente toda a primeira metade do século XX e inimizades entre as escolas de kung fu com igual destaque, o diretor cria expectativas demais para essas abordagens. Não se trata de ingredientes básicos ou coadjuvantes da história: eles realmente são filmados e escritos com importância de protagonistas e, como já foi dito, seu término não segue a mesma linha, daí a impressão levemente desconcertante que o público tem ao final.
O Grande Mestre é um filme de plasticidade e componentes técnicos ímpares. Não é um filme estésico, vale destacar. A beleza não é embasbacadora e feita apenas para encobrir uma história ruim, sobressaindo-se gratuitamente e enganando o espectador impressionável, como muitas obras de estirpe bonitinha por aí fazem, erroneamente confundidas como “poéticas” por críticos que teimam em classificar qualquer coisa bonita como sendo parte de uma linguagem poética. Longe disso. A despeito da falha na finalização, O Grande Mestre se sustenta na maior parte da projeção e é acompanhando por um trabalho visual e sonoro que lhe confere grandeza e sensibilidade pouco vistas em biografias cinematográficas. Além disso, as cenas de luta são maravilhosamente coreografadas e dirigidas com bastante precisão, chamando a atenção e impressionando até mesmo aquele espectador que não é afeito a películas de artes marciais.
O Grande Mestre é um dos mais belos filmes de sua safra. Sua execução é das melhores e faz jus a todos os louros recebidos pelo seu diretor, um artista que consegue criar poesia, história e movimento em mais de duas horas de imagens de tirar o fôlego. Coisa de um grande mestre.
O Grande Mestre (Yi dai zong shi) – Hong Kong, China, 2013
Direção: Wong Kar Wai
Roteiro: Wong Kar Wai, Jingzhi Zou, Haofeng Xu
Elenco: Tony Leung Chiu Wai, Cung Le, Qingxiang Wang, Elvis Tsui, Hye-kyo Song, Chia Yung Liu, Chiu Yee Tsang, Hoi-Pang Lo, Shun Lau, Xiaofei Zhou, Mancheung Wang
Duração: 130 minutos