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Crítica | A Pele Que Habito

por Luiz Santiago
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Segundo a mitologia grega, o profeta Tirésias passou sete anos transformado em uma mulher. O castigo foi-lhe imposto por Hera, deusa do casamento, irmã e esposa de Zeus, porque Tirésias matou uma serpente fêmea. Esse episódio fez de Tirésias um dos raros mortais mitológicos a experimentar a metamorfose do corpo masculino para o feminino. Embora sua transformação não tenha sido uma escolha, Tirésias assume com pleno rigor a identidade feminina, experimentando nessa nova forma os prazeres do amor. Após assumir novamente a forma masculina, o profeta é chamado por Zeus e Hera para julgar um impasse: quem, entre o homem e a mulher, sentia mais prazer? A resposta do profeta desagrada novamente a deusa, que lhe deixa cego. Apiedando-se do desafortunado homem, Zeus lhe concede o dom de prever o futuro e a sua mais famosa profecia esteve ligada à história de Édipo, o rei de Tebas.

Uma das maiores tragédias gregas, a história de Édipo é a de um filho que, sem saber, casa-se e procria com a própria mãe. Baseado nessa obra de Sófocles, Freud criou a teoria do Complexo de Édipo, que define a preferência sexual velada do filho pela mãe, e claro, o adendo do édipo materno. Se juntarmos todos esses ingredientes, teremos os principais elementos dramáticos deste filme de Pedro Almodóvar, A Pele que Habito (2011), um thriller emocionante e bem construído cujo foco central é a vingança.

SPOILERS!
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Tarântula

Mas a morada da aranha é a mais frágil das moradas.

Corão, 29,40.

Após uma vista panorâmica sobre a cidade de Toledo, no plano de abertura do filme, somos levados a uma mansão rodeada de árvores, um lugar idílico. Chama-se “El Cigarral” e está protegido por um muro alto com um portão de grades. Através de uma das janelas da mansão, uma figura feminina em movimento. A mulher parece estar nua enquanto pratica complicadas posições de yoga. A câmera se aproxima aos poucos. Deixamos a impessoalidade dos planos gerais e de conjunto para fixarmos os olhos nos primeiros planos. E então percebemos que a mulher está totalmente coberta por uma vestimenta nude, como se estivesse encobrindo queimaduras. Ao passo que a câmera nos mostra diferentes lugares da mansão e de um laboratório, a música acompanha tudo como em um concerto ritualístico, um mundo picotado, impregnado de cor azul.

Essa abertura e a sua extensão dizem muito sobre o tom do filme. É entre o humano e o animal (numa comparação metafórica que se aplica, muitas vezes, às atitudes reais das personagens), que o roteiro adaptado de Almodóvar irá traçar todo o caminho a ser percorrido pelos personagens. A transposição do livro de Thierry Jonquet para as telas é feita de maneira cuidadosa pelo cineasta espanhol. A história geral de Robert Ledgard, um cirurgião plástico que estuda com afinco a elaboração de uma nova pele — como se quisesse expiar um pecado não cometido — é apenas um fio da enorme e robusta teia do filme.

Em primeiro lugar, podemos trazer Robert Ledgard para o centro da teia, pois ele é o motor da história. Tarântula, a aranha saciada que guarda a comida para mais tarde é, como no livro homônimo, a sua identidade, a sua alma. O roteiro nos apresenta aos poucos uma criação morna de situações triviais: o médico em seu laboratório, a mulher fazendo yoga, a cidade, o cotidiano dos personagens. Aparentemente temos estruturas sólidas de vida relacionando-se. O suspense se dá a prestação, mais sugerido do que mostrado. Todavia, a cada nova parcela de fatos em que as coisas se apresentam, o filme ganha corpo e se torna melhor. A fragilidade da paciente cativa é também a fragilidade de todos os envolvidos. Entre a desconfiança e severos danos psíquicos, cada uma das presas dessa teia são tão frágeis quanto o mundo fabricado que as cerca.
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A Pele

…é uma rã bailarina, que ao se ver feia, toda ruguenta, pulou, raivosa, quebrando o espelho, e foi direta ao fundo, reenfeitar, com mimo, suas roupas de limo…

Guimarães Rosa

Um dos motivos recorrentes na filmografia de Almodóvar é a exposição das aparências ilusórias e enganadoras. Todos os seus personagens escondem algo, filtram ou alteram aquilo que demonstram ser, pelo menos na maior parte do tempo. Essa indicação do caráter humano pode ser aplicada como uma metáfora crítica à ação do cirurgião plástico em A Pele que Habito: aquele que esconde as imperfeições, que encobre com outra pele, a realidade. Nesse caso temos dois mundos encobertos, o primeiro do próprio cirurgião; e o segundo da personagem Vera (ironicamente, um nome de origem latina que significa “verdadeira”). A negação da realidade por uma busca incessante de uma pele adequada é a premissa moral do filme. E nesse ponto, a discussão sobre bioética se torna secundária. O problema está muito além da medicina.

O design de produção e a direção de arte são os dois setores responsáveis por tentar resgatar um restante de humanidade ao ambiente. Todos os cômodos da casa possuem quadros, a maior parte deles com figuras humanas nuas e alguns, de maneira muito sintomática, sem rosto. A decoração de interiores é clean, minimalista, quase futurista, lembra-nos de certo modo o design usado nos interiores das salas em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Essa configuração do espaço aparentemente convidativa vai se tornando opressora, principalmente quando percebemos o rumo claustrofóbico da obra e, pior ainda, quando a edição não nos permite respirar entre um ponto dramático e outro, uma gloriosa vitória da montagem de José Salcedo.

A prisão domiciliar conecta amorosamente (e ao final da obra teremos isso muito mais claro) as personagens de Robert e Vera. É claro que essa conexão é tão frágil quanto a sanidade de ambos e significa coisas diferentes para cada um, porém, ela será mantida como uma pele estável durante algum tempo. O antagonismo a essa união temporária é a mãe de Robert (embora ele não saiba desse parentesco), que assume o papel de governanta da casa. O caráter edípico que pontua a relação de ambos salta aos olhos do espectador. As atitudes da mãe sugerem a eliminação de Vera e um misto de repressão do desejo incestuoso termina por fazer dessa relação algo extremamente incômodo, provocando risos nervosos no espectador em determinado momento da projeção. Nesse aspecto, vale dizer que o diretor não tentou inserir uma veia cômica desmedida em um terror psicológico, principalmente se levarmos em consideração a sequência do tigre e dos falos alargadores. No momento em que há o riso não existe alegria alguma. Ri-se apenas pelo humor ácido ou pelo inusitado da situação que se apresenta e que prontamente se dissipa. O marco dessa fase do filme é a chegada de Zeca, o outro filho de Marília e meio-irmão de Robert. Com uma fantasia de tigre, ele não se diferencia dos outros personagens porque está escondido sobre uma frágil pele e, de fato, tem algo a esconder.

É apenas com esse aparecimento que o filme emplaca no suspense proposto e que uma série de pistas dadas pelo texto começam a ser delineadas. Até então, não sabemos que estas são pistas falsas, mas mesmo assim, elas servem para alavancar a trama. Não há uma única exposição sexual antes da chegada de Zeca. Assumindo a personalidade feroz e caçadora do animal no qual está fantasiado, Zeca parte em busca do quarto onde está Vera. É definitivamente uma cena trash de caça que culminará em um final típico almodovariano: um estupro. Desta feita, o início do ato sexual é contemplado por uma câmera no tatame, tão baixa, que só vislumbramos a borda de um dos grandes quadros da parede. As referências ao próprio cinema e a semelhança da atitude selvagem de Zeca com a de Alex, numa mesma cena de estupro em Laranja Mecânica, são um toque a mais na linha metalinguística que o diretor sempre explora, aqui, representada especificamente pelas telas do circuito interno de câmeras que observa Vera em seu claustro.

A pele que cobre o filme também traz sinais de Frankenstein, justamente porque a transformação ocorrida no terror gótico de Mary Shelley assume feições contemporâneas, mas não menos exatas no filme espanhol: o cientista maluco que se vê subjugado por sua criatura, como constatamos ao final do longa. E toda a transformação causada após a chegada do tigre começa a enrugar a calmaria, como a pele da rã feia citada no poema da epígrafe, uma metáfora literária que eu escolhi para indicar a situação de suicídio de Gal, que ao se vê refletida na janela, atira-se ao fundo de limo da morte, no jardim da casa.
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Conhece-te a ti mesmo

O dia em que Zeca invade a mansão El Cigarral e é assassinado pelo seu meio-irmão, as primeiras revelações começam a acontecer. Almodóvar faz do espectador a sua experiência, porque lhe apresenta possibilidades diversas para a história e, aos poucos, revela a sua verdade escondida, a verdadeira pele em que habitam todos os personagens. Nessa mesma noite, temos um longo flashback, marcado inicialmente por dois sonhos e depois por um terceiro, que no campo fílmico, assume a versão geral do espectador, uma exposição dialética e subjetiva por excelência. Primeiro, o sonho de Robert; depois o de Vera. Nesse momento não entendemos porque a câmera passa do rosto adormecido dele e vai até ela. Este sonho nos mostrará a versão da história cujo papel principal não é de uma uma mulher, mas de um jovem chamado Vicente. Até então, não sabemos que aquele corpo adormecido ao lado de Robert Ledgard não pertence àquela pele feminina.

A discussão do masculino e feminino em nossa sociedade está posta. Através da transformação de Vicente em Vera (uma forçada mudança de gênero), o duplo psicológico e sexual aparece brutalmente e nos mostra a patologia de Robert: transferir para o corpo do garoto que ele julgava ter estuprado sua filha, a face de Gal, sua falecida esposa. E com esse novo corpo e essa nova pele, a Gal ressuscitada, criada a partir de uma “matéria impura”, tem um casamento não declarado. A partir desse abuso de poder, podemos retomar uma última comparação com a Tarântula (Robert), trazendo o que Beaudoin chamou de “um excelente símbolo da introversão e do narcisismo, a absorção do ser pelo seu próprio centro.”. O poder, a violência e o contexto sexual latente são as palavras-chave para definir o estado da transformação plena que faz jus ao perfeito título: A Pele que Habito.

A essência de Vicente, no entanto, permanece no corpo de Vera. As modificações sofridas jamais dissiparam a vontade do rapaz em voltar para casa. A essência do ser e sua assinatura pessoal estão lá, e então passamos para a pintura final de Almodóvar. A Pele que Habito é um filme sobre as coisas frágeis que parecem fortes. Aliás, mais do que isso, é um filme sobre o que não pode ser destruído em um ser humano, independente da força bruta, coação, treinamento ou obrigação usadas contra ele.

A música de Alberto Iglesias retrata com perfeição essas faces díspares do ser moldado por outrem ou pelo mundo em que vive, e as do ser real, aquele selvagem indomável que existe em cada um de nós. O piano e a orquestra alteram a amplitude dramática de cada cena, alternando-se, acompanhando em crescendo certas passagens, indicando um estado de espírito… E mesmo o jazz ou a música cantada em português pela pequena Norma, e em espanhol pela cantora Buika, são os pontos fixos dessa jornada da vida.

Antonio Banderas (Roberto) e Marisa Paredes (Marília) são os veteranos em trabalhos de Almodóvar. Ambos fizeram parte do mundo neurótico do cineasta nos anos 1980 e voltam agora mais velhos e com interpretações deliciosas, especialmente Marisa Paredes, que consegue dar a Marília a exata feição, trejeitos, tom de voz e aparência cênica de alguém que “tem a loucura em suas entranhas”. Outro louvável destaque é a atriz Elena Anaya no papel feminino de Vera. Sua dualidade masculina / feminina não alterou sua postura como mulher, mas também deu à personagem uma dose de atitudes puramente masculinas. Como ninguém, a belíssima atriz comprou a identidade da transsexualidade e deu ao longa o brilho definitivo no campo das atuações. A impecável direção de Almodóvar nos mostra não apenas uma perfeita auto-reciclagem com estética, forma e conteúdo trazidos de Ata-me! (1989) e Kika (1993), mas também uma maturidade cinematográfica que manipula o máximo de referências, transformado-as em seu próprio mundo.

De volta ao presente

Flores e corpos nus em quadros, Édipo materno, estupro, transsexualidade, loucura e amor são componentes de A Pele que Habito, cada um deles com o seu papel desenvolvido a partir de uma personagem. O homem é o principal objeto dessa experiência fílmica e sua maldade, podridão de alma, prepotência e vontade de vencer estendem-se pelas duas horas da fita. Tomado de uma força crítica e ao mesmo tempo experimental, Almodóvar vai além das margens de seus três filmes anteriores (Má Educação, Volver e Abraços Partidos) e consegue retornar para o cinema de gênero sem retroceder ou pisar em falso.

Cabe ao espectador encontrar, a partir da cena final, o significado pleno da revelação e da ironia que a acompanha. No mais, somos partidários de Vicente. Somos continuamente transformados por um mundo que nos quer a sua cara. Ou a cara daquilo que considera a sua perfeita Gal, o perfeito comportamento, o perfeito homem ou mulher. E aí está a vingança. Por um lado, o sistema de regras desobedecidos já prevê a punição para os rebeldes. Por outro, o reconhecimento de uma identidade interna gera o assassinato moral do meio e, simbolicamente, de quem mais se puser à nossa frente, no caminho de nossa busca por nós mesmos. Ao fim de tudo, o ego, a pele que habitamos, pouco tem do ser que verdadeiramente somos. Resta-nos corroer a ideia do algoz e aguardar o momento certo para exprimir a revelação seca, emocionada e final: “Eu sou Vicente”.

A Pele que Habito (La piel que habito) — Espanha, 2011
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar, Agustín Almodóvar (baseado na obra de Thierry Jonquet)
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo, Eduard Fernández, José Luis Gómez, Blanca Suárez, Susi Sánchez, Bárbara Lennie, Fernando Cayo
Duração: 120 min.

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