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Crítica | As Praias de Agnès

por Luiz Santiago
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Um pequeno retrato quatro por quatro de toda uma vida no cinema”. Essa frase poderia resumir, mas não chega nem perto da dimensão do documentário As Praias de Agnès (2008), uma cinebiografia da diretora belga Agnès Varda. O filme é um rico inventário profissional e pessoal da cineasta, uma pá óptica que revira a memória e a põe em cena através de todos os artifícios possíveis, para torná-la visível ao espectador. Esse passado “que foi ontem, mas já é passado!” muitas vezes alcança um tom nostálgico e até elegíaco.

Narrado em primeira pessoa, o primeiro obstáculo da diretora ao se dispor dirigir, atuar e narrar parte do filme foi livrar-se do didatismo mortal que fere esse tipo de obra. Para tanto, Varda realiza um grande número de encenações e versões de seu próprio passado e chega a questionar-se em uma das cenas se reconstruir uma determinada situação de sua infância chegava a ser no mínimo fiel à sua memória. É claro que nem ela consegue responder a essa pergunta. Aliás, o filme está repleto de perguntas sem respostas e observações pessoais que nos são compartilhadas em paralelo às realizações fotográficas, artísticas e cinematográficas da diretora. Começando com a justificativa para o título e o tema central do filme, as praias, e terminando com a comemoração de seu aniversário de 80 anos, temos em As Praias de Agnès um pequeno suspiro artístico em tom de desabafo, vindo daquela que é considerada a mãe da Nouvelle Vague.

Qualquer documentário biográfico é refém da linha do tempo. Em alguns casos, essa natural imposição deixa o material parecido com uma reportagem ou narrado em partes, trazendo em cada uma delas algumas reflexões e informações sobre o biografado. Mas quando vemos a história e a arte mesclar-se ao realismo pretendido por um filme desse tipo, temos um produto híbrido de gêneros, não se podendo separar ficção e realidade, ambas convivendo ao mesmo tempo e no mesmo espaço passado, representado como um terceiro produto, no presente. Isto é As Praias de Agnès, um retrato do mundo pessoal e de um Universo particular imerso na dinâmica ficcional e também documental do cinema. Varda reconstrói cenas de sua infância com base em fotografias, interliga essas cenas com suas exposições, instalações, filmes, vídeos e termina esse ciclo revisitando os mesmos lugares litorâneos que marcaram sua vida, a fim de repensar muitas coisas e observar os efeitos do tempo. Tal qual as suas praias, Agnès Varda perpetua o fluxo incessante de relações humanas que estabeleceu durante toda a vida, indo do engajamento político feminista ao amor pela família e principalmente pelo esposo e também cineasta Jacques Demy.

O formato em que Varda fixa o documentário de sua vida é o maior exemplo do seu estilo de fazer cinema. Durante toda a carreira ela empregou um constante renovo de métodos e recriação dos gêneros que escolheu trabalhar. Mesmo em suas ficções observamos uma tendência ao insólito, técnicas que procuram elencar originalidade enredo e identidade autoral. Cléo das 5 às 7 (1962), Sem Teto Nem Lei (1985) e As Cento e Uma Noites de Simon Cinema (1995) são bons exemplos de como em diferentes fases de sua carreira, a diretora reescreveu as regras do jogo cinematográfico ao seu alcance.

Trazendo da fotografia a excelente concepção de planos, ângulos e cor, Varda cria um admirável fluxo interno através da captação de imagens, posteriormente editadas de um modo aparentemente desconexo, mas sempre voltando ao ponto de partida, um retorno que nunca repete informações, tendo o mérito de trazer coisas novas para o mesmo tema central. Esse rigor plástico alcança não só a composição interna do filme, seja nas recriações (como a brincadeira das meninas na areia da praia ou do quadro Os Amantes, de Magritte) ou na exposição dos fatos, mas também no jogo de luzes, profundidade de campo e trânsito de elementos em cena, numa estrutura muito parecida com a do teatro. A ela, junta-se um uso de trilha sonora não coincidente com a imagem, opção que produz na mente do espectador um significado menos racional, pontuado de sentimento e encanto.

Se há um erro em As Praias de Agnès, podemos dizer que é a narrativa muito aberta a temas paralelos. Mas isso não consiste um problema. O filme não se perde um único momento, mesmo quando passa de uma cena emotiva, como a que a diretora chora ao ver um grande número de fotografias de amigos mortos, para a “entrevista” concedida pelo gato Guillaume no Egito (Chris Marker). Cenas contrastantes estão espalhadas por todo o filme.

Diante dos outros temas trabalhados como a viagem de de Varda à China, a Cuba, sua militância feminista e suas angústias e medos pessoais, vemos surgir a paixão pela sétima arte, que pontua e registra todas essas fases, aqui ligadas ao presente em que o documentário se constrói. Por fim, o amor pelas praias, amor que pode definir não apenas um gosto pessoal mas todo um estado de espírito ligado ao que é o cinema de Agnès Varda, segundo definição dela mesma: “… se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Mas se me abrissem a mim, encontrariam praias”.

As Praias de Agnès (Les Plages d’Agnès) – França, 2008
Direção: Agnès Varda
Roteiro: Agnès Varda
Elenco: Agnès Varda, André Lubrano, Blaise Fournier, Adrée Vilar, Stéphane Vilar, Christophe Vilar, Rosalie Varda, Mathieu Demy, Christophe Vallaux, Mireille Henrio
Duração: 110min.

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