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Crítica | Um Barco Para a Índia

por Luiz Santiago
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Um Barco Para a Índia foi o terceiro filme de Ingmar Bergman, que adaptou o roteiro da peça homônima de Martin Söderhjelm. A história central tem o trio Alexander, Johannes (pai e filho) e Sally, uma cantora de cabaré. Cercam-nos os outros marinheiros do barco de salvamento e a subserviente esposa do capitão Alexander e mãe do Imediato Johannes. A terrível relação entre gerações, já contida na peça, é intensificada no roteiro de Bergman a ponto de o pai tentar matar o filho asfixiado, em um mergulho.

A luta entre os dois homens ganha uma outra dimensão após a chegada de Sally, que praticamente “salva” Johannes do julgo paterno. Os dois jovens, então, se apaixonam. Conforme o filho ganha coragem para desafiar o genitor e tomar suas próprias decisões, o velho tem os dias de sua visão contados: em um ano ele estará completamente cego. Um amargo desespero toma conta de Alexander e seu crescente ódio pelo filho é, na verdade, o ódio pela juventude, pelo vigor que pode proporcionar experiências diversas, especialmente para os marinheiros. Pouco tempo depois de conhecer Sally, Alexander lhe conta sua enfermidade e então conclui: “A pior coisa não é ficar cego. […] É nunca ter visto nada“.

Na sequência de abertura do filme vemos um navio solitário no mar. O céu anuncia uma tempestade noturna. Em uma elipse de dias, vemos Johannes descer fardado pela escada de um navio e entrar numa pequena cidade portuária. Ele procura por Sally. Quando a encontra, fica espantado com o seu estado decadente. Em uma outra elipse, vemos Johannes numa praia da mesma cidade. Ele caminha a esmo e se deita na areia rodeada por uma baixa vegetação costeira, quando se obriga a lembrar do que aconteceu antes, o que o levou até ali. Esse flashback será o corpo do filme.

A primeira vez que Johannes aparece em seu flashback está meio escondido, ouvindo os outros marinheiros falarem mal de seu pai e de si. É visível que o personagem tem medo e, para confirmar esse temor que paira (fortalecido pela música dramática de Erland von Kock), Bergman faz inúmeras tomadas “através de” alguma coisa, como se a câmera precisasse se esconder para captar o que se passa. Além do medo, Johannes tem um forte complexo de inferioridade por ser corcunda. Em um momento de explosão emocional e estranhamente libidinosa, bêbado, ele obriga Sally a dizer que ele é uma aberração. Descobrimos que é por esse motivo que o pai o menospreza e o odeia. A mãe também manisfesta o seu sentimento de rancor, relembrando que até o nascimento de Johannes ela tinha uma vida feliz ao lado de Alexander.

Bergman estrutura a forma do filme em dois espaços específicos: o externo sempre alegre — o espaço de fuga — e o interno claustrofóbico do barco onde moram os protagonistas — palco das coisas ruins. Nesses dois espaços a mise-en-scène tem o ódio como motor-guia e todo o filme é resultado da construção do perdão ou da consequência do ódio plasmados como que por olhos marejados pela bela fotografia de Göran Strindberg (de Música na Noite e Prisão, ambos de 1948).

Em Um Barco Para a Índia, encontramos três grandes motivos recorrentes na futura filmografia de Bergman: o teatro de variedades (apresentação de números musicais no cabaré e apresentação de fantoches); a praia e seus arredores, filmados em parte com a câmera baixa, à Ozu; e cenas de “surtos” dos personagens. As tomadas na praia possuem uma beleza idílica e são fotografadas com uma precisão quase irreal, com uma iluminação muito bem modulada em suas nuances. Os ousados ângulos empregados desenham um filme arquitetônico e há momentos em que a montagem de Tage Holmberg (que voltaria a trabalhar com Bergman em Mônica e o Desejo, 1953) constrói, com a forma interna, uma prisão em torno das personagens. O uso e a construção imagéticas de uma arquitetura ganham então significado simbólico, narrativo e metafórico. As duas sequências no moinho são de uma poesia bela e triste e revelam tanto uma equipe técnica muito preparada, quanto um jovem diretor extremamente exigente em composição de planos.

Em meio a tanta adversidade, o personagem Johannes consegue se sagrar marinheiro e endireitar a postura. O reencontro com Sally não era o que ele esperava mas, assim como ela teve um papel importante para sua libertação, ele se sente no dever de insistir em levá-la em sua nova viagem, tirar a mulher que ele ama da depressão causada pelo amor reprimido e impossível até então.

Na sequência final, vemos apenas as gaivotas no céu e o navio ganhando velocidade. O lugar para onde o casal parte conserva não só a felicidade que tanto buscam mas um distante cenário-fuga, quando os lugares conhecidos por eles não os satisfaziam mais. O Oriente é um mundo, o símbolo do futuro imaginado feliz. Para o casal, se torna real o verso de Álvaro de Campos: “A Lua começa a ser real”. O ódio se desintegra e some, o casal parte feliz e o espectador fica com uma incômoda incerteza ao ver se afastar aquele barco cheio de possibilidades tristes e felizes para a Índia.

Um Barco Para a Índia (Skepp till India land) – Suécia, 1947
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman, Martin Söderhjelm
Elenco: Holger Löwenadler, Anna Lindahl, Birger Malmsten, Gertrud Fridh, Naemi Briese, Hjördis Petterson, Lasse Krantz, Jan Molander, Erik Hell
Duração: 98 min.

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