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Da última vez que caí na armadilha de ler histórias em vários volumes que se passam em universos de fantasia, eu me arrependi. Foi o caso dos sete livros que compõem a saga A Torre Negra, escritos por Stephen King. No entanto, com todo o rebuliço em torno da adaptação de A Guerra dos Tronos em série de televisão e o consequente sucesso alcançado, acabei me convencendo de ler o livro, deixando a série televisiva para um segundo momento.
Pouco sabia da série escrita por George R.R. Martin antes de ler sobre a série de televisão. Quando finalmente decidi ler, ainda antes da 1ª Temporada da série ser lançada, tentei – com sucesso – me esquivar de quaisquer spoilers que semanalmente saíam nos mais variados sites. Assim, respeitando meus leitores, essa crítica, como quase todas as que faço aqui, será livre de spoilers. Quem não leu ou viu a série, podem ler meus comentários com tranquilidade.
A Guerra dos Tronos foi lançado nos EUA em 1996 e faz parte do gênero literário intitulado high fantasy, que se caracteriza por obras de escopo épico que se passam em mundos paralelos. São exemplos desse tipo de fantasia obras como as de J. R.R. Tolkien (O Hobbit, a trilogia O Senhor dos Anéis e as demais obras no universo da Terra-Média), C.S. Lewis (As Crônicas de Nárnia) e, claro, a já citada obra em sete partes de Stephen King. Imaginada primeiro como uma trilogia, As Crônicas de Gelo e Fogo, da qual A Guerra dos Tronos é o primeiro volume, é hoje composta de cinco volumes (o quinto, A Dança dos Dragões, foi lançado em 2011), com mais dois prometidos pelo autor, que já se manifestou preocupado com a série “alcançando” seus livros antes que ele acabe de escrever a saga.
A história se passa nos continentes fictícios de Westeros e Essos. Westeros é um continente composto por Sete Reinos, todos eles comandados por um rei, Robert Baratheon. Essos é composto de “cidades livres” e pradarias onde bárbaros nômades conhecidos como Dothraki gostam de cavalgar e de pilhar. A Guerra dos Tronos se passa entre esses dois continentes que lembram muito uma combinação de vários países durante a Idade Média.
A Guerra dos Tronos conta três histórias paralelas, mas interconectadas sob o ponto de vista de oito personagens diferentes. A primeira das histórias, onde o livro começa, é na Muralha, uma parede congelada gigantesca no extremo norte do território de Westeros e guardada pela Patrulha da Noite, um grupo de soldados sem alianças a reis específicos que vivem unicamente para defender Westeros de ameaças do misterioso norte congelado, ameaças essas que só sobrevivem por meio de lendas. O prólogo do livro se passa nessa região inóspita e nos mostra que há algo muito estranho acontecendo por lá. Mas, aqueles que torcem o nariz para elementos sobrenaturais, não se preocupem, pois A Guerra dos Tronos tem raízes muito sólidas na “realidade”, com apenas pitadas de elementos fantásticos (pelo menos nesse primeiro livro).
A segunda história se passa entre os vários reinos que compõem Westeros, especialmente Winterfell, comandada por Lord Eddard “Ned” Stark, da casa Stark. Winterfell é o reino mais próximo da Muralha e é o que vive em condições mais precárias, pois, apesar de ainda ser verão, o local é sempre frio. Além disso, Ned Stark sempre vive preparado para o pior, pois o lema de sua família é “o inverno está chegando” e o verão de 10 anos está acabando, o que significa que um longo inverno – de talvez uma geração – esteja realmente chegando. Ned vive uma vida relativamente tranquila (apesar de dura) e tem cinco filhos com Catelyn, sua esposa: os meninos Robb, Bran e Rickon e as meninas Sansa e Arya. Além disso, ele tem um filho bastardo de uma “escapulida” há muitos anos, chamado Jon Snow, que é criado normalmente junto com seus filhos, ainda que não tenha direito ao nome, títulos e bens da família Stark.
Essa aparente tranquilidade começa a mudar quando Ned e seus filhos encontram um mitológico animal chamado direwolf (não muito diferente de um lobo bem fermentado e símbolo da casa Stark), morto depois de uma briga com um cervo (símbolo da casa Baratheon, do rei). O animal deixa, então, seis filhotinhos que, claro, são distribuídos para cada um de seus filhos. Devo confessar que esse começo, com uma profecia tão escancarada, me incomodou muito, mas o livro fica muito melhor a partir daí.
Tudo complica de verdade quando chega a notícia que Jon Arryn, a “mão” do rei (seu principal conselheiro) morreu e que o próprio rei está se dirigindo para Winterfell, com toda sua comitiva real. Ned e Robert têm uma rica e antiga história de amizade e de guerras e Ned sabe que Robert está se dirigindo para Winterfell para pedir que ele seja a nova mão do rei, o que significa que Ned terá que se mudar para a capital, Porto Real, no sul de Westeros. Tudo seria ótimo e maravilhoso não fosse a família Lannister, da qual Cersei, a esposa do rei, faz parte. Cersei, fica logo claro, não é flor que se cheire e Ned tem que lidar com um jogo político (ou um “jogo de tronos” como diz o título) que ele não domina. A família Lannister, cujo símbolo não por acaso é um leão, também é composta de Jaime e Tyrion, irmãos de Cersei. Enquanto o primeiro é um exemplo de beleza física e destreza em combate, o segundo é um anão sem muita habilidade com instrumentos mortais. No entanto, Tyrion é incrivelmente culto, inteligente e esperto e sua fidelidade não jaz cegamente com a de sua família, o que o torna, de longe, o personagem mais interessante do livro.
E, finalmente, a terceira história se passa em Essos, onde vemos o casal de irmãos Viserys e Daenerys, os últimos descendentes da família Targaryen (cujo símbolo é um dragão) que reinou em Westeros até ser deposta e quase que completamente aniquilada por Robert (que virou rei), Ned (que voltou para Winterfell) e pela família Lannister (que comanda o reino de verdade, usando seu vasto poder financeiro). Viserys tem só um desejo: reunir um exército, invadir Westeros e retomar o Trono de Ferro (símbolo do reinado, composto de instrumentos de guerra dos derrotados). Para isso, ele não tem o menor pudor em literalmente vender sua irmã para ser a esposa de Khal Drogo, um brutamontes chefe de uma das tribos nômades bárbaras que formam os Dothraki. O objetivo, claro, é usar os Dothraki para dominar Westeros.
Mas há muitos e muitos outros personagens que não cabem aqui comentar. Alguns são muito bem desenvolvidos, outros estão lá para figuração. O que fica evidente logo de cara é que George R.R. Martin tem uma grande habilidade e domínio de seu texto, equilibrando com maestria não só o quanto de atenção cada personagem recebe mas, também, o quanto de mitologia ele insere na trama. Como é comum nesse gênero literário, há um gigantesco (milenar mesmo) histórico de eventos por trás do que se passa no livro. São deuses antigos, deuses novos, invasões, mortes, assassinatos, reinos que surgem e desaparecem, tudo para dar solidez ao que é descrito no livro, ou seja, algo que justifica e torna “real” o presente que é tratado na obra. Não vi, pelo menos nesse primeiro livro, aquela profundidade mitológica que encontramos nas obras de J.R.R. Tolkien, mas é algo muito parecido e George R.R. Martin merece aplausos com o que consegue fazer.
O que ajuda muito na narrativa foi a escolha de como redigir os capítulos. Martin, diferente da maioria dos autores, no lugar de eleger uma narrativa em terceira pessoa ou até em primeira pessoa, literalmente como se um narrador de fora ou de dentro da história estivesse contando-a, decidiu escrever a partir do ponto de vista de oitos personagens (Ned, Catelyn, Bran, Sansa, Arya, Jon, Tyrion e Daenerys) em rodízio. Isso não só cria narrativas diferentes a cada capítulo, o que quebra a possível monotonia de uma narrativa constante em terceira ou primeira pessoa, como permite que elementos da mitologia e impressões de cada personagem sejam embutidos na história sem que as coisas pareçam forçadas.
Esse livro, na versão impressa original, tem mais de 700 páginas, mas elas passam com bastante fluidez, ainda que seja necessário parar para lembrar de alguns nomes aqui e ali. Há necessidade, também, de um certo grau de perseverança para “quebrar a barreira” das primeiras 50 ou 100 páginas, quando Martin nos apresenta o be-a-bá de seu universo. Mas as recompensas valem e muito a tentativa. E o mais interessante é que, além das detalhadas – e obrigatórias – cenas de violência medieval (até cabeças de cavalo são cortadas com um golpe de espada), há também algo que pouco é abordado nesse gênero literário: sexo. E o melhor é que não é aquele sexo gratuito, desconectado da história. As narrativas sobre o ato sexual – algumas violentas, outras não – estão perfeitamente encaixadas no contexto, sendo necessárias mesmo, especialmente quando Martin trata da relação entre Daenerys e Khal Drogo.
E o mais impressionante nisso tudo é que, apesar da complexidade das tramas, da quantidade de personagens e de locais, Martin desenvolve a história de maneira muito natural e crível – mesmo quando trata de assuntos sobrenaturais que, como disse, têm presença muito discreta nesse livro – sem fazer concessões. Assim, fica um aviso para quem não leu: apegar-se a algum personagem nessa série é algo perigoso, pois, navegando contra o que se faz por aí, George R.R. Martin não vai manter um personagem na trama só porque ele pode ter agradado ao leitor. Preparem-se para deixar seu queixo cair.
A Guerra dos Tronos – As Crônicas de Gelo e Fogo – v. 1 (A Game of Thrones – A Song of Ice and Fire – vol. 1, EUA – 1996)
Autor: George R. R. Martin
Editora (nos EUA): Bantam
Editora (no Brasil): Leya Brasil
Páginas: 592