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Crítica | Madadayo

por Luiz Santiago
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Akira Kurosawa tinha 81 anos de idade quando iniciou o processo de filmagens de Madadayo (1993), o seu último filme. Baseado em uma série de ensaios autobiográficos de Hyakken Uchida, o filme conta a história de um professor de alemão que se aposenta no início dos anos 1940 (no decorrer da Segunda Guerra Mundial), e que além de ser amado pela sua atual geração de alunos é tido em altíssima conta e igualmente amado pelos seus alunos mais antigos (pais dessa atual geração). Com visitas regadas a bebedeiras, conversas, piadas e cânticos, o professor e seus antigos alunos festejam a aposentadoria e dão boas-vindas a uma nova fase.

Não demora muito tempo para o espectador fazer uma junção de situações e compreender que Madadayo é uma bela metáfora do preparo e caminho para a morte. Mas ao mesmo tempo que essa posição bastante lúgubre pontua toda a aura do filme, temos em voga uma relação muito diferente da que temos no Ocidente sobre o que é morrer. Longe de preceitos ou doutrinas de salvação da alma, expiação de pecados e afins, o velho professor de Madadayo vive como um jovem que envelheceu sem perceber, nunca perdendo o senso de humor e a vontade de viver. No início do filme ele ainda não havia se dado conta de sua idade, tamanha a juventude de sua alma. Isso só vai ficar claro – pelo menos a princípio – quando a primeira cerimônia do Maadha-Kai for realizada, estando então o professor com 60 anos.

Junto a esses acontecimentos bastante pessoais, Kurosawa volta ao tema da guerra de maneira direta, assim como fizera em sua obra anterior, Rapsódia em Agosto. É interessante observar que em ambas as fitas temos idosos frente a alguma situação complicada e o trauma da guerra que os rodeia. O diretor vinha desde Sonhos trabalhando elementos que lhes eram muito pessoais, embora com intensidades diferentes, expondo na tela alguns de seus medos e constituindo suas personagens de emoções que também eram as suas. Esses sentimentos à flor da pele, no entanto, deram um tom caricato demais para certas interpretações dos atores, fazendo com que Rapsódia e Madadayo sejam mais exemplos pessoais, morais, éticos e filosóficos de Kurosawa do que exemplos estéticos, imagéticos e narrativos de sua filmografia. Não é que não exista beleza ou boa direção nesses filmes, longe disso, mas a intenção do diretor está mais voltada para a exposição de conceitos em relação a algumas coisas e, desse modo, o deslumbramento estético precisa dar lugar à honestidade do ancião diante de seu futuro.

No drama da guerra, o professor perde a casa em um bombardeiro aéreo e passa a morar num casebre minúsculo, nos arredores de Tóquio. A incursão de um narrador e uma montagem sem nenhum excessos — além do timming invejável — fazem a ponte entre a vida do professor aposentado e o homem vítima da guerra. Ao passo que o professor envelhece, tudo à sua volta também muda e, nesse ponto, citamos como destaque as nuances fotográficas que, além de demarcarem as estações do ano, pintam de uma tonalidade sutilmente diferente cada fase da vida do professor. Além disso, as alterações nos figurinos e na maquiagem dos alunos e do sensei também apontam para o correr do tempo.

Mas a despeito de ter uma ótima ligação entre a vida pessoal e profissional do Sr. Uchida, o roteiro de Kurosawa desaponta em um episódio específico, o do desaparecimento do gato Nora. A citação pode parecer despropositada à primeira vista, mas se o leitor bem lembrar de como é loga toda a sequência e do quão pouca coisa interessante temos nela — aqui, refiro-me a elementos realmente importantes para a história ou para definir uma certa condição psicológica para o professor –, concordará comigo que um bom corte feito nesse miolo poderia dar-lhe outra cara. À essa altura, já sabíamos que o sensei era um senhor com coração de criança e modo de vida de um jovem bon vivant. Também já tínhamos percebido a sua relação com a esposa e o coração de ouro de seus eternos alunos. Portanto, a lenta sequência com o desaparecimento do gato se constitui uma falha narrativa que alongou demais um momento do filme que poderia ter um grande valor, mas acabou se tornando um tropeço para uma parte do andamento da história.

As sequências finais de Madadayo, com o 17º (e último) Maadha-Kai, as canções de devoção dos alunos (agora, além de pais, avós) e o fim do longo caminho percorrido pelo professor, são, para mim, alguns dos grandes e mais pessoais momentos de Kurosawa no cinema. Embora essa reta final não seja tão bem dirigida quanto a primeira parte da película, há muito mais sentimento, carinho e nostalgia nela do que em todo o restante do filme, o que deixa a história ainda mais emocionante e metaforicamente bela, especialmente quando ele coloca a vida e a morte como uma brincadeira de criança, que foge de seus amigos em um jogo de pega-pega, dizendo repetidamente madadayo! (ainda não!). No final das contas, todo o ocorrido nessa parte da obra serviria como um prenúncio para o próprio caminho final do diretor. Após a estreia de Madadayo e sua má recepção por parte da crítica, Kurosawa já trabalhava em dois roteiros, mas acabou sofrendo um acidente que lhe quebrou a base da espinha e o confinou a uma cadeira de rodas. O diretor morreria cinco anos depois, sem nunca mais pisar os pés e um set de filmagem. Ambos os roteiros finais do diretor foram terminados e filmados por outros membros de sua equipe: primeiro, Depois da Chuva (1999), e depois, Sob o Olhar do Mar (2002).

Madadayo não constitui um final apoteótico para a obra de Kurosawa, mas seria injusto não dar à obra o seu e alto devido valor. Contextualizando o seu surgimento e o que movia o mestre naquele momento da vida, é muito natural que o filme tenha seguido por um caminho bastante distinto de colocações como as que vimos em Sonhos, onde tínhamos em tela uma explosão de brilhantismo técnico. Madadayo é um grande filme, com uma falha chateante em seu miolo. O canto do cisne de um dos maiores cineastas da História do Cinema.

Madadayo (Japão, 1993)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Hyakken Uchida
Elenco: Tatsuo Matsumura, Kyôko Kagawa, Hisashi Igawa, Jôji Tokoro, Masayuki Yui, Akira Terao, Takeshi Kusaka, Asei Kobayashi, Hidetaka Yoshioka, Yoshitaka Zushi, Mitsuru Hirata, Nobuto Okamoto, Tetsu Watanabe, Norio Matsui
Duração: 134 min.

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