O rescaldo carnavalesco do Oscar 2025 veio dar num imenso frenesi em torno do filme Anora — sobretudo porque Mikey Madison levou para casa o prêmio de Melhor Atriz. A internet se transformou num tribunal de moralistas, onde cada comentário compete por imitar uma esquete cômica: “Se for pra premiar filme de puta, era só ter levado Bruna Surfistinha!”, ecoam essas vozes que, na pressa, se esquecem de perguntar: os odiadores da vez realmente assistiram ao filme? Para os que se deram ao luxo, fica claro que o que o diretor faz com o corpo da mulher, em Anora, não é uma mera objetificação tarada, mas uma escolha dramática que culmina numa cena final que pisoteia qualquer discurso falsamente preocupado com o corpo feminino exposto na tela (algo que a atriz concordou em fazer e deixou muito claro que gostou do papel). Ignorar essa complexidade é, no mínimo, uma desculpa conveniente para quem prefere debater desonestamente — e, sinceramente, parece que a hipocrisia anda de mãos dadas com esses neomoralistas das redes.
Está formado o circo de acusações em estilo livre: o diretor — supostamente um sionista que segue páginas pornográficas — é rotulado de “conservador, com pautas de direita que apoia o massacre palestino e a opressão feminina”. Mas, independente da verdade ou do impacto disso (leia a Trilogia do Cancelamento!), que relação isso tem com o produto fílmico chamado Anora? O filme é um recorte ficcional bem estruturado de uma prostituta — ou, como muitos preferem hoje, uma profissional do sexo — num conto frustrado de Cinderela que voa alto demais até ter as asas derretidas pela fornalha capitalista, que a enxerga apenas como carne barata tentando escalar os altos degraus da pirâmide social… Vamos simplesmente ignorar tudo isso que o filme escancara para poder apedrejá-lo com a consciência limpa?
Confesso: a vitória de Mikey Madison me deixou tão frustrado quanto os milhares de espectadores que acreditavam que o prêmio só poderia ir para Demi Moore ou Fernanda Torres (de preferência, para a nossa totalmente indicada). Mas há uma diferença gritante entre criticar um processo de premiação repleto de campanhas e politicagens, e inventar fanfics absurdas sobre uma obra que dialoga com temas complexos como a própria objetificação da qual é acusada, o falido sonho americano e o vazio existencial.
Enquanto uns se perdem num mar de incoerências, sem mesmo ter assistido à obra que condena, outros — que vivem gravando videozinhos babando peitorais, coxas e até o volume no short de homens sarados — têm a pachorra de questionar uma obra que faz um recorte sobre o mundo da prostituição, sobre desejos, nudez (masculina e feminina!), sexo e contradições. Os mesmos perfis que passaram meses tietando o rosto e o corpo de Luigi Mangione, de repente, se transformam em carolas acusadores da libido, da nudez e do sexo, dizendo-se horrorizados com as páginas safadinhas que Sean Baker segue em suas redes sociais. É mole?
A crítica — quando fundamentada — é bem-vinda. Mas não podemos aceitar análises que se embasam em fantasias alucinadas e ataques pessoais alheios à obra, esquecendo que a arte, por sua própria natureza, é subjetiva e repleta de nuances e contextos. Não é porque alguém não aprecia determinada estética ou narrativa que ela automaticamente se torna ruim (e o oposto também é verdadeiro). O debate é saudável desde que se mantenha nos limites da coerência e do reconhecimento daquilo que o produto verdadeiramente apresenta. Diminuir qualquer criação porque ela “não fez o que você esperava” ou porque não seguiu os critérios ferrenhamente estabelecidos pelas vozes da sua cabeça não é crítica. É atestado de internação urgente no CAPS.
E assim seguimos. Entre o desejo de um Oscar justo (quem nunca?) e a realidade de um sistema que valoriza mais campanhas bem feitas e exibição do filme para o máximo de pessoas do que a essência qualitativa do cinema (alguém ainda não sabe disso?), o que realmente falta é discernimento, em vez de achar que uma atriz que recebeu um prêmio é culpada de alguma coisa. Criticar é direito de todos. Mas criticar com consciência e honestidade, sem bancar o pedante hipócrita querendo dar lição de moral numa obra de ficção sobre prostituição, é um privilégio que poucos parecem ter aprendido.