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Crítica | Somna

Erótico e revoltante.

por Ritter Fan
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O uso dos fatos históricos relacionados com a perseguição e julgamento das chamadas Bruxas de Salem na Massachusetts colonial no século XVII como figura de linguagem para a luta pelos direitos civis, liberdades individuais e toda a sorte de perseguição a grupo específicos de pessoas é algo que vem com força desde a publicação da célebre peça Bruxas de Salem (The Crucible), de Arthur Miller, em plena primeira metade dos anos 50, época de profunda mancha e vergonha em razão da inquisição governamental contra qualquer suspeito de conexão próxima, distante ou imaginária com a dita ameaça comunista nos EUA encabeçada pelo infame senador Joseph Raymond McCarthy. As roteiristas e desenhistas Becky Cloonan e Tula Lotay parte desse conceito para criar uma história de perseguição à bruxas em que o foco é a libertação sexual feminina em uma narrativa sensual e erótica que consegue ao mesmo tempo ser revoltante e trágica e que levou o prêmio Eisner em 2024 de melhor série nova.

Arte de Becky Cloonan.

Ingrid é uma bela mulher casada com o inquisidor de um vilarejo que, sob a desculpa do trabalho, tendo há pouco levado uma “bruxa” à fogueira, dá pouca atenção a ela, abrindo espaço para que seus desejos de cunho sexual desabrochem a cada sonho que tem com um criatura diabólica que a seduz. Gravitando a seu redor, há sua melhor amiga que efetivamente cede à tentação da carne e tem um caso extraconjungal com o marido da mulher queimada em um mundo em que o papel da mulher é unicamente servir ao marido, cuidar dos filhos e tudo isso com todo o recato possível, como uma prisão onde os desejos – mesmo aqueles com seus maridos – são condenados a priori e conectados com sedução demoníaca. Trata-se de um tema já muito explorado na literatura e no audiovisual que ganha real diferenciação em Somna pela convergência dos trabalhos artísticos de Cloonan e Lotay, cada um seguindo seus bem diferentes estilos que se encaixam perfeitamente ao que a narrativa exige.

Cloonan desenha “o mundo real” com seu estilo mais realista, mais pé no chão, que materializa um mundo repleto de regras masculinas sobre o que a mulher pode ou não fazer e, principalmente, pode ou não sentir ou, talvez melhor dizendo, pode ou não manifestar. A bela arte com traços fortes e marcantes cria um mundo opressor, carregado de sujeira, de dor e de feminilidade podada e condenada a seguir regras e costumes que tolhem a imaginação, o erotismo e o sexo. Por outro lado, Lotay desenha o mundo onírico e sobrenatural em que cada sonho de Ingrid aproxima-a justamente daquilo que ela não pode ter ou sequer pensar quando acordada está, algo que os traços mais lânguidos e o estilo de pintura da artista servem com perfeição absoluta e fazem de cada uma de suas páginas um quadro digno de se pendurar na parede. Se é mesmo o demônio que seduz Ingrid ou se a figura sombria que vemos é, apenas, uma manifestação do puritanismo do patriarcado que se sente ameaçado pelas mulheres (nada mudou!), fica para o leitor decidir, pois é na convergência cada vez mais constante de estilos, que, por consequência, fundem o real e o potencialmente imaginário/sobrenatural que está o sabor, a crítica e o desafio de Somna.

Arte de Tula Lotay.

No entanto, as magníficas artes não são  consubstanciadas por roteiro de igual qualidade por parte da mesma dupla criativa. O que Cloonan e Lotay escrevem é básico, simples, sem arroubos criativos e sem usar a narrativa realmente a seu favor para além do potencial que cria para a materialização de suas ideias em páginas de beleza ímpar. Ingrid é uma personagem de uma nota só que começa e termina de maneira quase igual, sem real arco narrativo e com incrementos de complexidade que chegam a ser frustrantes. Os demais personagens então – seu marido, sua melhor amiga, o amante de sua melhor amiga e o vigário – não passam de recortes em cartolina, de arquétipos que sequer podem verdadeiramente ser chamados de personagens completos, com contornos com um mínimo densidade. Eu entendo quando a história é apenas uma desculpa didática para desenhos arrebatadores, como é o caso aqui, com aquela dose saudável e perfeitamente lógica de erotismo que é raro de se ver mesmo em obras independentes, mas é necessário entender que, com o bônus vem o ônus e Cloonan e Lotay miraram de verdade em apenas um aspecto do que criara, focando na imagem e deixando o conteúdo para segundo, talvez terceiro plano.

Com isso, Somna é forma sobre substância. É, como ficou claro pelos meus comentários, uma grande forma sobre uma substância válida, com crítica pertinente, mas que não se arrisca em momento algum, não ousa como os desenhos ousam. Faz parte do jogo, claro, e o encadernado em capa dura de tamanho avantajado publicado tanto lá fora quanto aqui é propício para a observação do contraste artístico das autoras – e é um deleite passar vagarosamente as páginas para observar cada detalhes especialmente do trabalho embasbacante de Lotay – e para o esquecimento de que faltou conteúdo para que a HQ alcançasse um posto verdadeiramente mais alto na mente do leitor.

Somna (Idem – EUA, 2023/24)
Contendo: Somna #1 a 3
Roteiro: Becky Cloonan, Tula Lotay
Arte: Becky Cloonan, Tula Lotay
Cores: Tula Lotay, Dee Cunniffe, Lee Loughridge
Letras: Lucas Gattoni
Editoria: Will Dennis
Editora original: DSTLRY
Data original de publicação: 22 de novembro de 2023; 31 de janeiro e 27 de março de 2024
Editora no Brasil: Comix Zone
Data de publicação no Brasil (encadernado): 17 de fevereiro de 2025
Tradução: Érico Assis
Páginas: 168

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